LIVRO II
(São João Crisóstomo )
LIVRO SEGUNDO |
1. |
Poderia ainda estender-me mais intensamente sobre a questão, se
é lícito usar da astúcia dolosa para uma finalidade boa; mais
ainda, que tais artimanhas nem deveriam ser chamadas dolo ou logro,
mas, muito antes, ser consideradas cálculo digno de admiração.
Mas o que foi dito já deve ser o suficiente para minha
justificação; pois tornarse-ia enfadonho e fastidioso delongar-me
demasiadamente. De resto, agora, deve ser tua vez de provar que a
astúcia em questão não tenha sido usada em tua vantagem.
e depois da afirmação deste, acrescenta:
Aqui o Mestre pergunta ao discípulo "amas-me", não para ser ensinado; pois, como seria isto possível para quem perscruta todos os corações? Pergunta para demonstrar quanto o preocupa o pastoreio de seus rebanhos. Se isto é tão evidente, é claro também que foi preparado um prêmio grandioso e indizível para quem se ocupa com o que o próprio Cristo tanto estima. Vendo como alguns dentre nós cuidam de seus criados e até de seus rebanhos de gado, costumamos taxar este seu zelo de expressão de amor, mesmo que todos estes bens possam ser comprados a dinheiro. Quanto mais rico prêmio pagará ao pastor de seu rebanho aquele que adquiriu a sua grei não a dinheiro, ou outro preço material, mas por sua própria morte, pagando com seu Sangue o preço real pelos seus? Quando, em seguida, o discípulo respondeu: "Senhor, tu sabes que te amo", tomando como testemunha o próprio Amado, o Salvador, não se contentando com isto, acrescentou ainda outra prova de seu amor. Não queria submeter à prova o amor de Pedro, o que já se tinha evidenciado por uma série de fatos, mas intencionava mostrar a Pedro e a todos nós quanto ele próprio amava sua Igreja, a fim de que nós desenvolvêssemos todo o nosso zelo ao entrarmos no seu serviço. Porque Deus não poupou o próprio Filho, o único, mas entregou-o por todos nós. Fê-lo a fim de reconciliar os seus inimigos e conseguir para si um povo exclusivamente seu. E por que derramou o seu Sangue? Para arrebanhar a sua grei que Ele confiou a Pedro e seus sucessores. Com toda razão Cristo disse:
Novamente esta pergunta é como a palavra de um homem que se sente constrangido. Quem, porém, a apresentou, não o fez por constrangimento. Mas, como na interrogação feita a Pedro - se este o amava -, não pergunta porque tivesse necessidade de ser instruído sobre o amor do discípulo, mas para mostrar a nós o excesso de seu amor, assim também agora, ao perguntar "quem é o servidor fiel", não o faz, como se não conhecesse o servidor fiel e prudente, mas para demonstrar-nos a raridade desta fidelidade e prudência, a dignidade e a importância do cargo. Veja também o alto prêmio:
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2. |
Ainda queres discutir comigo, como se não tivesse usado de astúcia em boa intenção? Pois serás estabelecido sobre todos os bens de Deus, administrando o mesmo cargo que Pedro, de quem o próprio Senhor afirmou que superaria a todos os outros apóstolos. A Pedro Ele disse:
Poderia ter dito:
Deixando tudo isto de lado, o que diz?
Todas estas tarefas enumeradas facilmente poderiam ser empreendidas por súditos não só homens, mas também mulheres. Se, porém, se tratar de ser chefe de uma Igreja, de assumir a incumbência de cuidar de tantas almas, de tão grande missão deverão ser excluídas as mulheres todas e não poucos dos homens. Devem ser escolhidos somente aqueles que se sobressaem de maneira excepcional, que, em nobreza espiritual, superam a todos ainda mais do que Saul superava todo o povo hebraico em altura corporal. Porque aqui não se deve olhar apenas a altura dos ombros, mas, quanta a diferença entre as criaturas racionais e irracionais, tanto o pastor deve sobressair do rebanho que lhe for confiado, para não dizer mais. Pois aqui se trata de bens muito mais preciosos. Quem perdeu algumas ovelhas - seja que lobos as dilaceraram, ladrões as levaram, uma epidemia ou um desastre as dizimou - com certeza conseguirá perdão da parte do dono do rebanho; e, caso lhe for exigida substituição do perdido, esta exigência poderia ser satisfeita com indenização pecuniária. A quem, porém, forem confiados homens racionais - o rebanho de Cristo - a este não se impõe pena pecuniária, caso perder suas ovelhas, mas ele perderá a sua própria alma. Portanto, a luta que ele tem que enfrentar será mais renhida e difícil. Não precisa lutar contra lobos, não precisa temer ladrões, também não precisa manter afastadas epidemias e doenças; - mas: deve fazer guerra! Contra quem? Com quem deve lutar? - Escuta as palavras de Paulo:
Vês a grande multidão dos inimigos e suas terríveis linhas de batalha, não blindadas com ferro, mas armadas com sua própria natureza? Ainda queres ver outro exército, rude e indômito, que persegue este rebanho? Poderás vê-lo do mesmo ponto de observação, pois o mesmo apóstolo que enumerou aqueles outros adversários, também os descreveu, dizendo mais ou menos o seguinte:
Não enumerou a todos os inimigos, mas deixou ao nosso critério
encontrar outros, em conseqüência dos citados.
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3. |
No que, porém, diz respeito às doenças dos homens, em primeiro lugar não é fácil diagnosticá-las. Pois ninguém
Como então alguém poderá aplicar medicamento contra uma doença de que desconhece o caráter? Pois, muitas vezes, nem consegue constatar se existe alguma doença. Quando, porém, a doença é manifesta, surgem dificuldades maiores ainda. À força não se pode curar um homem doente como o faz o pastor com suas ovelhas. Às vezes, também nos homens, torna-se mister amarrar, negar alimentos, queimar e cortar. Todavia, a decisão de aceitar ou não tal tratamento não é de quem o queira aplicar, mas de quem o tiver que suportar. Isto bem o expressou aquele homem digno de toda admiração ao escrever aos Coríntios.
De maneira alguma pode-se permitir aos cristãos querer corrigir, à força, os erros dos pecadores. Realmente os juízes profanos usam de todo o seu poder contra os malfeitores, tão logo os reconheçam réus, e os impedem, pela força., de continuar no modo de vida, mesmo contra a vontade deles. Entre nós, porém, é uso corrigir tal homem não pela violência, mas pela persuasão. Pois, de um lado, as leis não nos cedem tal poder no combate ao pecado; de outro, caso o tivéssemos, não deveríamos usá-lo, porque Deus dá a coroa a quem de livre vontade se abstém do pecado e não a quem o evita obrigado. Daí precisa-se de grande habilidade para convencer os doentes a se submeterem voluntariamente à medicação dos sacerdotes; e que além disso saibam ser-lhes gratos pela cura. Porque quando alguém, apesar de amarrado, se levanta num salto - pois a liberdade para isto lhe assiste - aumenta seu mal; quando não dá ouvido às palavras cortantes como ferro, com este seu desprezo abrirá novas feridas, e, o que deveria conseguir sua cura, será causa de mal ainda pior. Não há ninguém que consiga curar um doente por coação e contra a vontade dele. |
4. |
O que fazer, pois? Caso se trate benignamente uma ferida que
exige um corte profundo, consegue-se remover só uma parte, deixando
outra. Praticando-se, porém, o corte profundo sem piedade, pode
acontecer que as dores causadas levem o doente ao desespero: rasga as
ligaduras, tira o ungüento aplicado e perder-se-á por completo
depois de ter rompido as algemas da coação. Poderia citar muitos que
deixaram arrebatar-se às perversidades extremas, somente porque
tinham sido punidos em desproporção a seus crimes.
Por tudo isso, o pastor precisa de uma profunda compreensão,
necessita de mil olhos para perscrutar de todos os lados o estado da
alma. Assim como muitos, deslumbrados, desesperam de sua própria
salvação, porque não suportam a amargura do medicamento, assim há
outras que, dispensados de penitência adequada à gravidade de seus
pecados, perdem-se na leviandade, tornandose sempre piores e caindo
em pecados sempre mais graves. Por conseguinte, é mister que o
sacerdote não tome nenhuma destas atitudes, sem antes ter examinado
tudo da maneira mais adequada, a fim de que os seus esforços não
sejam frustrados.
Por isso Cristo também falou aos discípulos:
Pois aqueles cujo cristianismo se restringe à sua própria pessoa,
também limita a utilidade do trabalho apenas a seu proveito próprio;
o trabalho eficiente das funções pastorais, porém, deve
estender-se ao bem do povo todo. Realmente apresenta alguma utilidade
aos outros quem distribui dinheiro aos pobres, ajuda de alguma maneira
aos necessitados, mas tanto menos do que o sacerdote, quanto o corpo
é inferior à alma. Com razão, pois, o Senhor declarou que o
cuidado prestado a seu rebanho é medida do amor que alguém tem por
Ele.
não se deve excluir, por isso, um exame minucioso e cuidadoso. O
próprio Paulo não quer que tal testemunho seja anteposto ao exame
rigoroso dos elegendos. Pois, somente depois de ter mencionado muitas
outras condições, acrescenta esta, para dar a entender que, numa
eleição tão importante, não nos devemos restringir a ela, além
dos outros postulados, ainda devemos procurar o testemunho (da
multidão). Muitas vezes acontece que a voz da grande multidão
engana. Entretanto, se antecedeu um exame cuidadoso, a voz da
multidão não oferece perigo. Por isso, o apóstolo colocou "o
testemunho dos de fora" atrás dos outros postulados. Pois não disse
simplesmente: "deve gozar de boa reputação", mas intercalou a
palavra "também", para dar a entender que, antes de considerar a
opinião "dos de fora", a personalidade do elegendo deve ser
submetida a um exame bem rigoroso. Agora, como eu conhecia a ti e
tuas qualidades melhor do que os teus pais, como tu mesmo afirmas, com
toda razão deveria ser absolvido de qualquer culpa.
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5. |
Retruquei: de fato me lembro de ter ouvido, muitas vezes,
palavras semelhantes de tua boca; não posso negá-lo. Entretanto,
se alguma vez zombei de ti, o fiz por brincadeira, nunca com
seriedade. Mas não vamos discutir isso agora! Apenas peço que
aceites com eqüidade se quero enaltecer uma ou outra de tuas boas
qualidades. Pois, se quiseres acusarme de mentiroso, não te
pouparei; pelo contrário, provarei que falas assim mais por modéstia
.do que por amor à verdade; e, para confirmar esta minha
argumentação, não precisarei de outros testemunhos do que as tuas
próprias palavras e ações.
E Paulo diz:
e,
Este tesouro primoroso, este característico dos discípulos de
Cristo, mais estimável do que os dons da graça, vi-o brotar, qual
planta nobre, em teu coração, dando frutos preciosos. Basílio
respondeu: que o amor muito me preocupa esforçando-me,
sobremaneira, por atender ao postulado deste mandamento, não o nego.
Entretanto, caso deixares de querer agradar-me e quiseres honrar a
verdade, deverás concordar comigo que não consegui realizá-lo nem
pela metade.
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6. |
Quando um dos nossos amigos, caluniosamente acusado de orgulho e
de imprudência, se encontrava numa situação bem aflitiva, tu te
precipitaste no meio dos perigos sem ter sido acusado e sem que o
amigo, em sua aflição, to tivesse pedido. Esse foi um de teus
feitos excelentes.
Se, por conseguinte, não se pode encontrar amor maior do que este,
tu o realizaste em sua maior medida, alcançando seu auge por palavras
e fatos. Por isso te traí, por isso usei de dolo. Chegaste
finalmente a convencer-te de que não agi por malícia, não na
intenção de prejudicar-te, mas com a consciência de levar-te a um
cargo em que poderias distribuir grandes bênçãos?
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7. |
Também a mim, respondi, afinal interessa tratar disso. Pois
uma vez terminadas as minhas explicações relativas à tua pessoa, com
prazer me dedicarei à segunda parte da justificação.
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8. |
No caso de ter aceito o cargo, aqueles que gostam de falar mal
dos outros teriam encontrado boa ocasião de espalhar calúnias não só
contra mim, o eleito, mas também contra os eleitores, como por
exemplo: que dão preferência aos ricos; que deixam seduzir-se pelo
brilho da origem, ou que minhas adulações os tenham levado a
escolherme para o cargo. Sim, até nem se pode excluir que num ou
noutro tenha surgido a suspeita - não quero nem pronunciá-lo de que
os eleitores teriam sido subornados com dinheiro.
Caso tais acusações forem levantadas também contra ti, poderás desfazê-las bem ligeiro por tua atividade; pois a capacidade de um homem não pode ser julgada pela idade do mesmo e, como de um lado não se pode considerar experimentado um homem por causa de seu cabelo branco, de outro lado não se deve excluir do cargo citado um homem só por causa de sua mocidade, a não ser que seja cristão novato. Entre ambos, (cristão novato e fisicamente jovem), há uma diferença muito grande. |
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