LIVRO IV
(São João Crisóstomo )
LIVRO QUARTO |
1. |
Depois destas minhas palavras, Basílio meditou um pouco e disse
em seguida: Realmente se tivesses ambicionado esta alta dignidade,
com toda razão deverias estar com esse temor. Pois quem com ambição
pelo cargo confessa considerar-se apto, uma vez nele instalado,
jamais poderá desculpar seus erros alegando inexperiência. Pelo fato
de ter corrido ao seu encalço, cortou qualquer defesa para si mesmo,
e, tendo-o usurpado premeditada e voluntariamente, jamais poderá
apresentar desculpa dizendo: foi sem a minha vontade que causei a perda
deste ou daquele. O Juiz a quem tiver que prestar contas,
responder-lhe-á: Por que então, conhecendo tua inexperiência e
incapacidade para exercer o cargo, correste tão avidamente ao seu
encalço? Por que tiveste a ousadia de aceitar um cargo que supera
todas as tuas capacidades? Quem te obrigou a isto? Quem te forçou,
quando quiseste eximir-te?
disse
E agora? Depois de ter abusado da honra que Deus lhe conferira,
porventura, essas palavras conseguiram libertá-lo da ira daquele que
o constituíra rei? E ainda assim, quando Samuel o acusava, poderia
ter-lhe respondido: acaso fui eu quem aspirou a ser rei? Fui eu quem
insistiu, com veemência, em alcançar esse poder? Queria levar a
minha vida simples e tranqüila, livre de qualquer atividade pública,
quando tu, contra minha vontade, me impuseste a realeza. Se tivesse
continuado na minha posição modesta, facilmente teria evitado essas
faltas. Pois, pertencendo à grande massa, anônimo, não teria
sido enviado a realizar tal obra; Deus não teria colocado em minhas
mãos esta guerra contra os amalecitas e, se não fosse isso, jamais
teria cometido este pecado.
disse ele,
Por acaso, estas recusas contínuas conseguiram desculpar seu
comportamento ao fazer brotar água do rochedo? Sabemos que foi por
isso que Deus lhe vedou a entrada na terra prometida. Por sua
desconfiança este homem admirável perdeu o direito ao que foi
concedido a todos os seus súditos. Depois de tantas fadigas e
peripécias, depois das aventuras indescritíveis, depois de tantas
lutas e vitórias, não pôde entrar na terra pela qual se submetera a
tudo isso!
e
Admitamos que os judeus, depois de terem ouvido essas palavras, levantassem acusações contra Cristo:
Na verdade, tal procedimento seria de um estulto e totalmente louco. Pois Cristo, o médico, não veio para condenar-te, mas para salvar-te e curar-te totalmente de tuas doenças. Tu, porém, voluntariamente fugiste de suas mãos; toma, pois, o castigo mais duro! Assim como entregando-te ao tratamento do médico terias sido curado de teus males, fugindo dele, não conseguirás mais livrar-te da doença, e não só deverás continuar a suportá-la, mas, além disso, terás que penitenciar-te por teres evitado os cuidados do médico! 'É por isso que o castigo que nos ameaça não é o mesmo de antes de termos recebido alguma incumbência de Deus; será mais rigoroso e mais duro. Pois quem não se deixa corrigir recebendo benefícios, com razão merece castigo maior. Sendo que este caminho de defesa também se mostrou insuficiente, não só pelo fato de não salvar os que a ele recorrem, mas até de prejudicá-los, deveremos procurar outro mais seguro. Que caminho será este? - perguntou Basílio. Com tuas palavras me incutiste tanto medo e tremor que já não me sinto seguro de mim mesmo! Insistentemente te imploro - retruquei -: não te deixes desanimar a tal ponto! Pois existe realmente um caminho bem seguro. Para nós, os fracos, consiste em nunca aceitarmos tal cargo, e, para vós, os fortes, em fazer depender a vossa esperança pela salvação unicamente da graça divina, cujo auxílio vos guardará de nunca praticar ação alguma que seja indigna desta graça e de seu divino doador. Merecem punição mais dura aqueles que pelo empenho pessoal conseguiram o cargo e o administram mal, quer por leviandade, quer por malícia, quer mesmo por inexperiência. Todavia também os que não ambicionaram o cargo estarão sujeitos à punição. Acho que não se deveria ceder às insistências de outros antes de ter examinado a própria alma com toda a sinceridade e máximo rigor. Ninguém, pois, ousará assumir a incumbência de construir uma casa se não for construtor, assim como também ninguém terá coragem de tratar o doente se nada entender da arte médica. Mesmo que muitos o pressionem a fazê-lo a todos eles rejeitará sem sentir-se envergonhado de sua ignorância. Ora, aquele a quem se quer confiar o cuidado por tantas almas não deverá examinarse primeiro, mas, mesmo sendo o mais inexperiente, deverá ele aceitar simplesmente o cargo, somente porque este ou aquele o quer, somente porque este ou aquele o pressionou, ou porque não quer ofender a este ou àquele? Como é possível? Porventura não se precipitará na maior desgraça. junto com todos os que lhe foram confiados? Em vez de salvar a sua própria pessoa ainda leva a muitos outros consigo para a condenação. Donde espera ele que lhe venha salvação? De quem espera perdão? Quem intercederá por ele? Porventura aqueles que ora nos pressionam? Quem então salvará a estes? Pois também eles carecerão do auxílio de outros para escapar do fogo. Não penses que estou dizendo tudo isso para atemorizar-te; para convencer-te que se trata da pura verdade, escuta o que Paulo escreve a seu dileto filho Timóteo:
Vês agora qual não é somente a censura, mas a punição das quais preservei a todos os que me quiseram impor esse cargo? |
2. |
Como aos eleitos não será desculpa suficiente dizer não
ambicionei o cargo, também não fugi dele por não conhecê-lo,
assim aos eleitores não adiantará declarar não terem conhecido o
eleito. Pelo contrário, até aumentarão a sua culpa porque elegeram
a quem nem sequer conheciam. Sua desculpa aparente aumentará ainda a
matéria de acusação. Que absurdo! Quem quer comprar um escravo,
apresenta-o primeiro aos médicos, exige avalista, informa-se junto
aos vizinhos e, com tudo isso não se contentando ainda, exige um
prazo longo de experiência. E querendo incumbir alguém de tão alta
dignidade eclesiástica procede-se superficialmente e ao acaso, sem
outro exame das personalidades do que o testemunho de um ou outro,
muitas vezes apresentado por favor ou desfavor. Quem haverá de
interceder por nós se aqueles que deveriam estar do nosso lado
também necessitarão da intercessão de outros?
Nesse caso, o castigo será apenas zombaria e escárnio. No outro
caso, porém, a punição será fogo inextinguível, será um verme
que nunca morre, será ranger de dentes, extrema escuridão e
aniquilação.
Pois que outra finalidade pode ter senão empregar todas as suas forças a fim de que esse Corpo se torne digno de sua Cabeça santa e imaculada? Se os médicos e ginastas na educação dos atletas já necessitam de um modo de vida bem regulamentado, de exercícios constantes para conseguir sua finalidade, quanto mais deverão esforçar-se no cuidado daquele Corpo, cuja luta não é contra carne e sangue, mas contra os poderes e dominadores invisíveis? Como é que alguém poderá manter este Corpo puro e imaculado se não entender extraordinariamente e, além do normal, do tratamento adequado das almas? |
3. |
Ou, por acaso, não sabes que este Corpo (Místico de
Cristo) está exposto a maior número de doenças e perigos do que a
nossa carne mortal; que ele mais fácil e rapidamente se corrompe e
mais lentamente sara? Para o nosso corpo carnal os médicos já
inventaram vários remédios, confeccionaram diversos instrumentos e
prepararam alimentos salutares para os doentes. Muitas vezes até
basta mudança de ar para recuperar a saúde. Acontece até que só um
sono profundo dispensa maiores cuidados do médico. Aqui, porém,
não se pode empregar nada disso; aqui, fora o bom exemplo, existe um
único meio e um único caminho, isto é o aconselhamento pela
palavra.
Pelo mesmo motivo os apóstolos entregaram o cuidado das viúvas a Estêvão e seus colegas, para poderem dedicar-se eles mesmos, mais assiduamente, ao ministério da palavra. Entretanto, não precisaríamos dedicar tanto esforço ao ministério da palavra se ainda possuíssemos o dom de praticar milagres. Já que deste dom não nos restou nem vestígio, ao passo que os inimigos nos atacam continuamente e de todos os lados, vemo-nos na necessidade de armar-nos com a palavra, quer para defender-nos dos ataques dos inimigos, quer para nós atacarmos a eles. |
4. |
É por isso que devemos cuidar que a palavra de Cristo habite
abundantemente em nós. Devemos estar preparados não só para uma
única luta; temos que enfrentar uma guerra muito variada que nos será
imposta pelos mais diversos inimigos. Ainda mais. Nem todos vêm com
as mesmas armas, nem nos atacam com a mesma estratégia. Quem,
portanto, tiver que enfrentar a todos, de todos deverá conhecer as
artimanhas. Deverá ser, ao mesmo tempo, arqueiro e atirador,
guia, e guiado, soldado e general, infante e cavaleiro; deverá ser
perito na terra e no mar. Nas batalhas comuns é costume que a cada um
dos participantes seja confiada uma tarefa especial em que deverá
ajudar a rechaçar o inimigo que ataca. Em nosso caso, porém, é
diferente se quiser vencer, sem ser perito em todas as facetas da arte
bélica. O demonio conhece o lado fraco - mesmo se for único - e
saberá dirigir seus auxiliares justamente para lá, a fim de roubar as
ovelhas. Não tentará fazê-lo verificando que o pastor possui
conhecimentos suficientes para descobrir-lhe as artimanhas.
|
5. |
O que vou dizer, finalmente, sobre as questões absurdas de nossos partidários? Estas não são de menos importância do que os ataques de fora, até chegam a exigir maiores cuidados da parte dos instrutores espirituais. Uns, movidos apenas pela curiosidade, sem outro motivo ou razão, querem ocupar-se com questões, cujo conhecimento não traz proveito, escapando até à nossa restrita inteligência. Outros procuram esclarecimento a respeito da justiça divina, querendo medir a profundidade do abismo do qual diz o salmista:
E, conquanto sejam poucos os que cuidam da verdadeira fé e de uma
vida reta, há muitos mais que, apenas por curiosidade, se ocupam de
questões inúteis, querendo penetrar no inescrutável, provocando com
isso a ira divina.
|
6. |
Foi justamente isso - retruquei - que levou muitos a se
perderem, tornando-se indiferentes à doutrina verdadeira. Uma vez
que não conseguiram compreender a profundidade do pensamento do
apóstolo nem penetrar no sentido de suas palavras, passaram o seu
tempo em anuir com a cabeça e escancarar a boca, defendendo a doutrina
que não é aquela de que o apóstolo se gloria, mas da qual ele se
encontra tão distante como nenhum outro debaixo do céu.
Caso exigíssemos (do sacerdote) a lisura de um Sócrates, a pujança de um Demóstenes, a dignidade de um Tucídides e o espírito profundo de um Platão, contra isso valeria esse testemunho de Paulo. Agora deixo tudo isso de lado, todos esses ornamentos dos escritores pagãos e não me importo com estilo e expressão. Pois o modo de falar pode ser pobre, a composição das frases pode ser simples e sem arte, somente, quanto à clareza e segurança nas verdades da fé, ninguém se pode mostrar inexperiente e ignorante, sobretudo quando se quiser invocar o testemunho do apóstolo para encobrir a própria ignorância. |
7. |
De que maneira - dize-me - refutou ele os judeus que moravam em
Damasco, mesmo no tempo em que ainda não tinha começado a operar
milagres? Como conseguiu superar os helenistas? Por que foi mandado
para Tarso? Acaso não foi unicamente porque os vencera a todos com o
poder de suas palavras, apertando-os de tal maneira que, irritados,
o procuraram matar? No entanto, naquele tempo ainda não tinha
começado a operar milagres. Assim também não se pode afirmar que a
multidão do povo o tenha venerado por causa de seus milagres, nem que
seus adversários tenham temido essa estima que gozara junto ao povo.
Pois até aí mostrara seu poder apenas em suas palavras. Como lutou
contra os que em Antioquia tentaram judaizar a todos? E aquele
Areopagita daquela cidade supersticiosa, - não foi pela palavra do
apóstolo, proferida perante o povo que ele, junto com aquela mulher
Dâmaris, aderiram a ele? Como foi que aconteceu que Eutíquio caiu
da janela? Não foi por que ficara noite adentro para ouvir as
palavras do apóstolo? E, finalmente, o que Paulo fez em
Tessalonica, em Corinto, em Éfeso e mesmo em Roma? Não passava
dias e noites explicando as escrituras? E o que vamos dizer ainda
sobre suas discussões com os epicureus e estóicos? Se quisesse
enumerar tudo, prolongar-me-ia demais. Ora, se consta que Paulo
serviu-se sobremaneira da palavra - tanto antes da prática de
milagres quanto durante a mesma - como é que alguém pode ousar
taxálo de inexperiente justamente naquilo em que mereceu a admiração
do povo? Por que os Licaônios o julgavam ser Hermes? Que Paulo e
Barnabé foram considerados deuses não era conseqüência de seus
milagres, mas de sua eloqüência.
Tudo isso o apóstolo o conseguiu por meio das suas cartas admiráveis que nos deixou e que estão repletas de sabedoria divina. E estes escritos nos são sobremaneira úteis não só para refutar doutrinas falsas e defender as retas, mas também para ensinar-nos o verdadeiro modo de vida. Ainda hoje os superiores das Igrejas servem-se destas cartas para fazer crescer a virgem imaculada - a Igreja - que (por Paulo) foi "desposada" a Cristo, instruindo-a e conduzindo-a à formosura espiritual. Por meio destas cartas eles também preservam esta virgem das doenças que a ameaçam, conservando-lhe a saúde constante. São estes os remédios que nos deixou o "tal ignorante", remédios de um efeito extraordinário, conhecido por todos que deles se servem. |
8. |
Escuta agora os conselhos que Paulo dá a seu discípulo:
Ainda acrescenta qual o fruto que disto lhe resultará:
E ainda:
E, continuando diz ainda
E ainda:
Em seguida, escuta o que ele impõe a Tito, falando-lhe sobre a instalação dos bispos:
Como é que um "ignorante", como os homens mencionados o chamam,
poderá refutar e silenciar os que contradizem? Para que seria útil
ocupar-se com a leitura das Escrituras, se devêssemos aceitar a
propalada "ignorância"? O que eles apresentam não é senão
preconceito e pretexto para encobrir sua leviandade e indolência.
E ainda:
É pois para todos que vale a palavra
Aos tessalonicenses Paulo escreve:
Falando dos sacerdotes, no entanto, ele expressa-se da seguinte forma:
É esta a finalidade mais nobre dos ensinamentos: que os que ensinam,
conduzem para a vida feliz junto com Cristo pelo exemplo não só do
que fazem, mas também pelo que dizem. O agir apenas não basta na
instrução verdadeira.
Se o cumprimento já incluísse ensinamentos, não precisaria do segundo verbo; pois teria sido suficiente dizer apenas "quem cumprir". Assim, porém, mostrou que distingue os dois conceitos, relacionando um às obras e outro às palavras e, para a edificação certa, ambas são necessárias. Ou não te lembras do que Paulo disse aos presbíteros de Éfeso?
Para que lágrimas, para que exortações por meio de palavras, quando a própria vida do apóstolo já era um exemplo tão claro? A vida exemplar, por sua vez, pode ser capaz de ajudar bastante na obediência aos mandamentos. Apesar disso, jamais ousaria afirmar que o exemplo só seja suficiente. |
9. |
Um exemplo. No caso de surgirem diferenças de opinião a
respeito de uma doutrina de fé e todos basearem sua opinião no mesmo
texto da Escritura, de que adianta em tal caso o modo de vida dos
disputantes? Qual a utilidade para quem na vida prática consegue
grandes resultados, se depois de todos os seus esforços, devido à
ignorância, cair em heresia separando-se do Corpo de Cristo? E
isso, eu bem o sei, já aconteceu a muitos. O que então lhe adianta
sua resignação, seu autodomínio? Nada, ou tanto quanto adiantaria
a verdadeira fé a um homem de má conduta. É por isso que quem for
chamado para ensinar os outros deve dispor de experiência
extraordinária nessas discussões. Mesmo que esteja absolutamente
firme no que diz respeito à sua própria pessoa e seja duro sofrer
prejuízo da parte dos adversários, jamais vale o mesmo para a grande
multidão dos ingênuos confiada a ele. Pois esta, vendo ser
derrotado seu superior sem poder enfrentar os adversários, atribui a
culpa desta derrota não à imperícia do superior, mas à falta de
segurança na respectiva doutrina da fé.
|
Todos os Direitos Reservados |