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Vês como o próprio Deus procura provar-te, da maneira mais
clara, que a punição reservada aos superiores é sensivelmente maior
do que a reservada aos súditos? Pois, se até a filha de um
sacerdote é punida mais severamente do que os outros - somente por ser
filha de sacerdote -, então, por certo, exigir-se-á satisfação
ainda muito mais rigorosa do pai. Com toda razão! Pois as
conseqüências do pecado do sacerdote atingem não somente a ele
mesmo. Fazem cair também as almas dos mais fracos e de muitos outros
que olham para o sacerdote como para seu ideal. É isto que o profeta
Ezequiel quer insinuar, separando, no julgamento, as ovelhas e os
carneiros.
Consegui, finalmente, convencer-te que meu medo tinha fundamento?
Na minha situação atual, mesmo que tenha que esforçar-me para
minha alma não ser derrotada pelas paixões, consigo resistir e não
fujo da luta. De fato, também agora a ambição me humilha; muitas
vezes levantome de novo, verificando que fui prisioneiro; às vezes
acontece também que lá me encontre acumulando uma infinidade de
autocensuras sobre minha alma humilhada. Desejos inconvenientes me
perseguem; a chama acesa por eles, porém, é tanto menos eficiente
quanto menos alimentação encontra através de meus olhos. Estou
livre da vontade de caluniar ou ouvir calúnias, porque não tenho
ninguém com quem dialogar; com estas paredes não se pode dialogar,
pois elas não têm ouvidos, nem voz. Entretanto, ainda não me é
possível evitar a ira, apesar de não haver ninguém que possa
provocá-la. Isso acontece porque muitas vezes me vem a recordação
de homens desprezíveis e de suas atitudes, que sempre de novo me
revoltam. No entanto, não chego ao extremo. Consigo abafar a
revolta rapidamente e tranqüilizo minha alma, considerando ser
sumamente desastroso 1s e extremamente miserável esquecer os próprios
pecados para ocupar-se com os do próximo.
O que, entretanto, diz respeito ao movimento da multidão, sendo
jogado de uma preocupação para outra, não me será mais possível
dedicar-me a tais observações e considerações. Como podem prever
a própria perdição os que, caindo numa forte correnteza ou num
redemoinho, se sentem puxados para o fundo sem esperança de
salvar-se, assim também acontecerá comigo ao cair no turbilhão das
paixões. Poderei observar com absoluta segurança como o perigo
aumenta de dia para dia, sem poder retirar-me, nem, como agora,
afugentar por uma autoobservação e autodisciplina, os perigos da alma
que me sobrevêm de todos os lados. Minha alma é fraca e pouco
resistente. Facilmente se deixa superar pelas paixões mencionadas,
bem como somente pela mais abjeta delas, a inveja. Esta não consegue
suportar, com equanimidade, tratamento arrogante, nem honrarias.
Enquanto essas a levantam sobremaneira, o outro a deprime. Como
animais selvagens robustos e exuberantes com facilidade vencem a quem os
ataca - são vencidos, porém, com a mesma facilidade caso se
conseguir quebrar sua força pela fome - assim acontece com as paixões
da alma humana. Quem lhes tira a força facilmente as subjuga ao bom
senso e à razão; quem, ao contrário, as alimenta e as acalenta,
robustecendo-as, terá que enfrentá-las durante toda a sua vida,
tornando-se seu impotente escravo.
O que é o alimento para essas feras? Para a ambição, honrarias e
louvores; para a soberba, grandes riquezas, posição de poder e
influência; para a inveja, o nome honrado do próximo; para a
ganância, a ambição dos doadores; para a vida desenfreada, a
moleza e encontros freqüentes com mulheres; com uma palavra, para
esta fera serve este alimento, para aquela, aquele outro. Todas
essas feras enumeradas, tão logo eu entrar na vida pública,
atacar-me-ão com veemência, dilacerando-me a alma.
Incutir-me-ão medo, tornando a luta contra elas mais difícil e
mais perigosa. Entretanto, continuando aqui meio escondido, também
terei que enfrentá-las, mas conseguirei vencê-las com a graça
divina, de maneira que a elas não resta outra coisa senão bufar
contra mim. Por isso guardo esta casinha, não saindo, nem
procurando contatos; acusam-me disso, mas suporto estas acusações
com toda a calma. Não quero dizer que não me afetem; às vezes até
fico triste, não tendo contato com amigos; convenço-me, porém,
de ser-me impossível querer continuar na atual tranqüilidade e
segurança e procurar, ao mesmo tempo, contato com outros homens.
Por isso, meu caro amigo, eu te imploro, queiras ter compaixão
comigo antes de me censurar.
Por acaso, tudo isso ainda não consegue convencer-te? Então
chegou a hora de eu revelar-te o último segredo que guardei em meu
coração. Talvez pareça incrível; mesmo assim não me envergonho
de confessá-lo publicamente. E mesmo que essa minha confissão possa
ser interpretada como prova de má consciência ou de muitos pecados,
de que me adiantaria deixar os homens na ignorância, uma vez que o
Deus onisciente sobre isto me vai julgar? Mas, afinal, qual é este
segredo? Desde o dia em que tu me transmitiste aquela notícia, meu
corpo esteve por diversas vezes em perigo de dissolver-se. Tão
grande era meu medo, tamanho desespero apoderou-se de minha alma. Ao
considerar a formosura ilibada da Esposa de Cristo, sua santidade,
sua perfeição espiritual, sua sabedoria, sua excelente
organização, colocandolhe ao lado a minha pobreza e pequenez, não
podia deixar de me entristecer, de me lamentar e de me deplorar a mim
mesmo. Entre soluços desesperados e dúvidas cruciantes eu me
perguntava: Quem poderá ter aconselhado isso? Porventura, a
Igreja de Deus se desviou tanto provocando a ira do Senhor, a ponto
de Ele permitir que ela me seja entregue a mim, o mais indigno?
Enquanto tais considerações me passavam pela cabeça, senti-me
incapaz de suportar, nem sequer em pensamento, tal absurdo.
Prostrado, semiparalisado e com a boca aberta como um louco, não
conseguia ver nem ouvir. Nos momentos em que me libertava dessa
prostração - pois de vez em quando por breves momentos ela me deixava
- prorrompia em prantos de desespero. Com as lágrimas se revezava o
medo que inquietava, confundia e sacudia minha pobre alma. Envolto
nessas tempestades passei estes últimos tempos; tu não o sabias,
pensando que me tivesse retirado para passar a minha vida na maior
tranqüilidade.
Quero, em seguida, tentar descrever-te estas tempestades que me
sacudiram a alma. Deixarás talvez de me censurar e me perdoarás.
Como, porém, conseguirei descrever realmente este vendaval de
paixões? Para dar-te uma fraca idéia, não terei outro meio senão
abrir-te o meu coração desnudando-o por completo. Como isso não
é possível, tentarei mostrar-te, pelo menos, a fumaça deixada por
esse meu desespero; quero fazê-lo por uma parábola, mesmo bem
fraca. Por ela mais facilmente poderás imaginar a situação de minha
alma. Mas vamos à parábola!
A filha de um rei poderosíssimo é noiva; esta virgem é de uma
beleza singular, superando a própria natureza humana e deixando longe
todas as outras belezas do sexo feminino; além disso, possui uma alma
tão perfeita que, nisto, supera o próprio sexo masculino; a
perfeição de seu caráter supera qualquer ideal filosófico; qualquer
beleza é sombra comparada com o brilho de sua graça. Suponhamos que
seu noivo esteja apaixonado não só por essas qualidades, mas chegue a
um fogo de amor tão forte que superasse todas as paixões humanas já
havidas nesta terra. Ora, no meio desse amor ardoroso chega a seus
ouvidos que um homem indigno e miserável, corporalmente defeituoso e
de péssimo caráter persegue a sua noiva adorada para casar com ela.
Será que com isso consegui colocar em frente de teus olhos uma pequena
parcela de minha dor? ou, por acaso, não é suficiente trazer a
parábola até esse ponto? Acho bem suficiente para demonstrar o meu
desespero. Pois é para isso que a contei.
Para mostrar-te também, mais claramente, o tamanho de meu medo e
minha consternação, quero apresentar-te uma imagem fantástica.
Imagina um exército composto de infantaria, cavalaria e marinha. As
naus com os marinheiros ao lado, numa baía do mar; em frente os
largos campos, as colinas e as encostas ocupados por infantaria e
cavalaria em linhas de combate. O metal das armas reluz ao brilho do
sol, cujos raios se refletem nos capacetes e escudos. O quebrar dos
dardos, o relinchar dos cavalos se elevam até o céu. De tanto
bronze e aço não se consegue enxergar o chão da terra, nem a água
do mar. Contra este exército vêm marchando os inimigos. Homens
rudes e fortes. O momento do combate é iminente. Eis que de repente
apoderam-se de um moço de origem campestre que não conhece outros
instrumentos senão bastão e flauta de pastor. Põem-lhe uma
armadura de aço e, conduzindo-o através de todo o acampamento
bélico, mostram-lhe os diversos contingentes junto com seus
respectivos chefes: os arqueiros, os atiradores, os capitães, os
generais, as falanges, os cavaleiros, os lanceiros. Em seguida,
lhe mostram as galeras com seus comandantes, os marinheiros equipados
nos próprios navios e o grande número de máquinas bélicas; depois
chamam-lhe a atenção para a linha de combate inimiga, e, nela,
gigantes de provocar medo, suas armas inusitadas, seu número imenso,
as profundas fossas, as encostas íngremes e todo o terreno irregular e
difícil; e, por fim, mostram como, do lado inimigo, como que por
forças mágicas, vêm voando pelos ares cavalos e cavaleiros
fortemente armados. Depois de terem mostrado tudo, começam a
descrever-lhe o ardor da luta e suas conseqüências : as nuvens de
dardos, as massas compactas de flechas, a escuridão que não permite
ver mais nada, a noite totalmente escura que segue, provocada pela
massa das flechas que são tão densas que os raios do sol não
conseguem mais penetrálas; as nuvens de poeira que aumentam ainda mais
a escuridão; depois, os rios de sangue, os gritos dos feridos, o
berreiro dos combatentes, os montões dos que tombaram, os carros de
combate respingados de sangue, os cavalos e cavaleiros caindo por cima
dos cadáveres. E, finalmente, depois da batalha, o próprio campo
de batalha o chão cheio de poças de sangue e, nelas, arcos e
flechas, pernas de cavalos, cabeças de homens, umas ao lado das
outras, braços de homens ao lado de rodas de carros, pedaços de
armaduras, partes de corpos humanos perfuradas, espadas com restos de
sangue e massa cerebral e ainda uma ponta de lança quebrada com um olho
humano espetado. Descrevemlhe ainda os horrores da luta marítima,:
os navios ardendo e soçobrando com toda a tripulação; como bramem as
águas, berram os marinheiros, como ondas de espuma e sangue se jogam
contra os navios, os montes de cadáveres no convés que em parte
afundam junto com o navio e em parte vão boiando até à praia.
Depois de ter mostrado tudo isso ao jovem, descrevem ainda a dureza da
prisão de guerra e a escravatura, piores do que a própria morte na
batalha. Acabada a descrição mandem-no montar e assumir o comando
supremo sobre o conjunto do exército. Achas, por acaso, que aquele
moço, depois do que lhe foi mostrado em imagens, ainda vai aceitar?
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