(São Dionísio Areopagita)
De fato, este Raio de Luz não perde nada de sua própria natureza, nem de sua
íntima unidade. Ainda quando atua e se multiplica exteriormente, como é próprio
de sua bondade, para enobrecer e unificar os seres que estão sob a sua
providência, permanece, no entanto, interiormente estável em si mesmo,
absolutamente firme, em imóvel identidade. Dá a todos, na medida de suas
forças, poder para elevar-se e unir-se a Ele segundo sua própria simplicidade.
Porém este Raio divino não poderá iluminar-nos se não estiver
espiritualmente velado na variedade das sagradas figuras, acomodadas ao nosso
modo natural e próprio, segundo a paternal providência de Deus.
Qualquer pessoa, ao refletir, dá-se conta de que a beleza aparente é sinal de
mistérios sublimes. O bom odor que sentimos manifesta a iluminação intelectual.
As luzes materiais são imagens da copiosa efusão da luz imaterial. As
diferentes disciplinas sagradas correspondem à imensa capacidade contemplativa
da mente. As ordens e os graus daqui debaixo simbolizam as harmoniosas relações
do Reino de Deus. A recepção da Sagrada Eucaristia é sinal da participação em
Jesus, e o mesmo sucede com os seres no Céu que de modo transcendente recebem
os dons que nos são dados simbolicamente.
A fonte da perfeição espiritual nos forneceu imagens sensíveis que correspondem
às realidades imateriais do Céu, pois cuida de nós e quer fazer-nos à sua
semelhança. Deu-nos a conhecer as hierarquias celestes; instituíu
o colégio ministerial de nossa própria hierarquia à imitação da celeste, tanto
quanto era possível, em seu divino sacerdócio. Revelou-nos tudo isto por meio
das santas alegorias contidas nas Sagradas Escrituras, para elevar-nos
espiritualmente desde o sensível e conceitual, através dos símbolos sagrados,
até o cume simplíssimo daquelas hierarquias celestes.
1. Antes de tudo, creio dever expor
qual é o principal objeto de toda a hierarquia, e em que sentido é proveitosa
aos seus membros. Em seguida, exporei as hierarquias celestes, segundo o que
nos revelou a Sagrada Escritura. Por último, descreveremos sob que formas
sagradas a Escritura representa as ordens celestes, pois através destas figuras
devemos elevar-nos a uma perfeita simplicidade.
Não
podemos imaginar, como faz o vulgo, aquelas
inteligências celestes com muitos pés e rostos, de forma parecida a bois ou
como leões selvagens. Não possuem bicos curvos de águias, nem asas ou penas de
pássaros. Não as imaginemos como rodas de fogo pelo céu, tronos materiais nos
quais senta-se a Divindade (Dn.
7, 9; Ap. 4, 2), cavalos de várias cores (Zac. 1, 8;
6, 2; Apoc. 6, 1-9), capitães brandindo espadas (Jos. 5, 13) ou qualquer outra forma em que as Santas
Escrituras no-las tenham representado em variedade de
símbolos. A teologia utiliza-se de imagens poéticas ao estudar estas
inteligências, que carecem de figuras. Porém, como fica dito, o faz em atenção
à nossa própria maneira de entender; serve-se de passagens bíblicas colocadas
ao nosso alcance, em forma anagógica, para elevar-nos
mais facilmente ao espiritual.
2. Estas figuras se referem a seres
tão espirituais que não podemos conhecê-los nem contemplá-los. Figuras e nomes
de que se valem as Escrituras são inadequados para representar tão santas
inteligências. De fato, poderia objetar-se que se os teólogos tivessem querido
dar forma corporal ao que é absolutamente incorpóreo, deveriam ter começado com
os seres tidos como os mais nobres, imateriais e transcendentes, em vez de se
utilizarem de múltiplas formas terrenas, ínfimas, para aplicá-las a realidades
divinas, que são totalmente simples e celestes. Quem sabe o façam com intenção
de elevar-nos e não de rebaixar o celeste com imagens inadequadas. Na
realidade, é uma ofensa indigna aos poderes divinos e induz nossa inteligência
ao êrro, confundindo-a com estas composições
profanas. Alguém poderia facilmente imaginar que acima dos céus haveria uma
multidão de leões e de cavalos, que os louvores seriam mugidos, que ali voariam
bandos de pássaros, ou que os céus estariam cheios de outros gêneros de
animais, matérias vis e semelhantes desatinos que descrevem, até o absurdo, a
corrupção e as paixões.
Porém se alguém investigar a verdade, colocará em
evidência a sabedoria das Escrituras. Nelas há um providencial cuidado em não
ofender os poderes divinos quando representam com figuras as inteligências
celestes. Com a mesma solicitude evitam que nos afeiçoemos desordenadamente aos
símbolos que contenham algo de baixeza e vulgaridade. Quanto ao mais, há duas
razões para que se represente com imagens o que não tem figura e para dar corpo
ao incorpóreo. Primeiramente, porque somos incapazes de elevar-nos diretamente
à contemplação mental. Necessitamos de algo que nos seja conatural, metáforas
sugestivas das maravilhas que escapam ao nosso conhecimento. Em segundo lugar, é muito conveniente que para o vulgo permaneçam veladas, com
enigmas sagrados, as verdades que contém sobre as inteligências celestes. Nem
todos são santos e a Sagrada Escritura adverte que não convém a todos conhecer
estas coisas (I Cor. 8, 7; Mt.
13, 11; Lc. 8, 10).
Em relação à inconveniência das imagens bíblicas, ou ao uso de comparações tão
baixas para significar hierarquias tão dignas e santas, esta objeção pode ser
respondida dizendo que a revelação divina apresenta-se de duas maneiras.
3. Uma procede naturalmente por meio
de imagens semelhantes ao que significam. A outra emprega figuras
dessemelhantes até a total desigualdade e ao absurdo. Ocorre algumas vezes que
as Escrituras, em seus misteriosos ensinamentos, representam a adorável santidade
de Deus "Verbo" (Jo. 1, 1), "Inteligência" (Is.
40, 13) e "Essência" (Ex. 3, 14). Fazem ver que a
racionalidade e a sabedoria são atributos convenientes a Deus, a quem devemos c
onsiderar real subsistência e causa verdadeira da
subsistência de todos os seres. Mais ainda, representam-no como Luz (I Jo. 1, 15) e chamam-no Vida (Jo. 11, 25).
Estas
formas sagradas certamente mostram mais reverência e parecem superiores às
representações materiais. Não são, entretanto, menos deficientes que as outras
em relação à Deidade, que está mais além de qualquer manifestação do ser e da
vida. Nenhuma luz pode expressá-la e toda razão ou inteligência não chega nem a
assemelhar-se-lhe.
Ocorre por isto que as mesmas Escrituras enaltecem a Deidade com expressões
totalmente dessemelhantes. Chamam-na de invisível, infinita, incompreensível e
de outras coisas que dão a entender não o que é, mas o que não é. Esta segunda
maneira, segundo o meu entender, é muito mais própria ao falar de Deus pois, como a secreta e sagrada tradição nos ensina, nada do
que existiu se parece com Deus e desconhecemos sua supraessência
invisível, inefável, incompreensível (Col. 1, 15; I Tim. 1, 17; Heb. 11, 27).
Posto
que a negação parece ser mais apropriada para falar de
Deus, e a afirmação positiva é sempre inadequada para o mistério inexpressável,
convém melhor referir-se ao invisível por meio de figuras dessemelhantes. Pelo
qual, as Sagradas Escrituras, longe de desprezar as hierarquias celestes,
enaltecem-nas com figuras totalmente dessemelhantes. Deste modo, realmente damos-nos conta de que aquelas hierarquias, tão distantes
de nós, transcendem toda materialidade.
Quanto
ao mais, não creio que nenhuma pessoa sensata deixe de reconhecer que as
dessemelhanças servem melhor que as semelhanças para elevar nossa mente ao
reino do espírito. Figuras muito nobres poderiam
induzir alguns ao êrro de pensar que os seres
celestes são homens de ouro, luminosos, radiantes de beleza, suntuosamente
vestidos, inofensivamente chamejantes, ou sob outras formas como estas com que
a teologia tem representado as inteligências celestes (Dan. 10, 5; Mt. 28, 3).
Para
evitar estes mal entendidos entre pessoas incapazes de elevar-se
acima da beleza que os sentidos percebem, piedosos teólogos, sabia e
espiritualmente, condescenderam com o uso de símbolos dessemelhantes. Agindo
assim eles frearam nossa tendência natural ao material e o desejo de
satisfazer-nos preguiçosamente com imagens de baixa qualidade. Com isto
favoreceram a elevação da parte superior da alma, que sempre anela as coisas do
alto. De fato, a tosquidade destes símbolos serve de
estímulo para que até os afeiçoados às coisas terrenas não possam julgar
verossímil nem possível a semelhança destas coisas
triviais com as celestes. Por outro lado, em todas as coisas há algo de beleza,
como diz corretamente a Escritura: "Tudo é muito bom" (Gen. 1, 31).
4. Todas as coisas podem favorecer a
contemplação. Conforme dizia antes, as dessemelhanças com o mundo podem
aplicar-se a estes seres que são simultaneamente inteligíveis e inteligentes.
Tenha-se, porém, sempre em conta a diferença que há entre o que cai sob o
domínio dos sentidos e do próprio entendimento. Assim, nas criaturas
irracionais a cólera nasce de um impulso apaixonado de movimento irascível, mas
deve-se entendê-lo de modo diverso quando se trata de quem desfruta da razão.
Neste caso a cólera é, creio eu, a firme atuação da
razão e a capacidade de perseverar com tenacidade em princípios santos e
imutáveis.
De
modo semelhante a concupiscência. Nos irracionais é
uma busca ilimitada de bens materiais sob o impulso do instinto ou do costume
de afeiçoar-se ao passageiro, apetite irracional dominador que induz os
viventes a possuir qualquer coisa prazerosa aos sentidos. Porém quando o
aplicamos ao ser inteligente, devemo-lo entender de outro modo. Dizemos que
sentem desejos, mas isto significa o anelo divino da Realidade imaterial, que
está além de toda razão e de toda a inteligência. É o firme e constante desejo
de contemplar pura e impassivelmente a Supraessência.
Fome espiritual insaciável e verdadeira comunhão com a luz imaculada e sublime,
de esplêndida e inefável beleza. Intemperança que será o ardor perfeito,
inquebrantável, manifesto no anelo constante da beleza divina, a total entrega
ao verdadeiro objeto de todo desejo.
Dizemos
que são irracionais os animais e os objetos, porque falta-lhes
a razão; aos objetos, falta-lhes também a sensação. Porém quando o dizemos dos
seres imateriais, intelectuais, entende-se sob o aspecto da santidade. São
criaturas que transcendem em muito a nossa razão corporal discursiva, como a
inteligência ultrapassa as sensações materiais. Portanto, podemos servir-nos
retamente de figuras, tomadas inclusive da matéria vil, em relação aos seres
celestes. Finalmente, as coisas terrenas subsistem graças à Beleza absoluta que
contém dentro de sua condição material. Pela matéria podemos elevar-nos até os
arquétipos imateriais. Porém deve-se ter cuidado especial para usar devidamente
as semelhanças e dessemelhanças. Não se pode estabelecer uma relação de
identidade mas, considerando a distância entre os
sentidos e o entendimento, acomodar-se-ão segundo corresponda a cada qual.
5. Veremos que os teólogos místicos servem-se disto
para falar das hierarquias celestes e também para explicar os mistérios da
Deidade. Às vezes celebram-na com imagens muito eloqüentes;
por exemplo, quando dizem Sol de Justiça (Mal. 4, 2; Sab. 5, 6), Estrela
Matutina que se levanta até a Inteligência (II Pe. 1,
19; Apoc. 22, 16), Luz de fulgor intelectual (I Jo. 1, 5; Mt. 5, 14). Em outros
casos utilizam-se de expressões mais terrenas. Comparam Deus com o fogo que
arde sem queimar (Ex. 3, 2; Sab. 18, 3; Ex. 13, 21), com a água que comunica
plenitude de vida, que metaforicamente chega às entranhas e forma rios
inesgotáveis (Jo. 4, 14; Jo. 7, 38; Prov. 18, 4). Utilizam também semelhanças de
coisas ordinárias, como ungüento suave (Cant. 1, 3; Is. 61, 1; Jer. 1, 5; Atos 10, 36), pedra angular (Is.
28, 16; Ef. 2, 20). Chegam até a
comparações de animais. Atribuem a Deus propriedades do leão, da
pantera, do leopardo, e do urso devorador (Is. 31, 4; Os. 5, 14; 13, 7). Acrescente-se o que parece mais
abjeto e impróprio de tudo, a forma de verme (Sl. 22, 6), com a qual representaram a Deus admiráveis
intérpretes dos mistérios divinos.
CAPITULO
III
1. Em meu julgamento,
hierarquia é uma ordem sagrada, um saber e atuar o mais próximo possível da
Deidade. Elevam-se a imitar a Deus proporcionalmente às luzes que dEle recebem. A Beleza de Deus tão
simples, tão boa, origem de toda a perfeição, não admite em si a menor
dessemelhança. Dispensa a todos, segundo o mérito de cada um, sua luz e
aperfeiçoa-os revestindo-os misteriosa e estavelmente de sua própria forma.
2. A hierarquia,
portanto, tem como fim conduzir as criaturas, tanto quanto seja possível, à semelhança
e união com Deus. Uma hierarquia tem a Deus como mestre de todo saber e ação.
Não deixa de contemplar sua diviníssima beleza. Leva em si a marca de Deus. Faz
com que seus membros sejam imagens dEle
sob todos os aspectos, espelhos transparentes e sem mancha (Sab. 7, 26),
refletindo o brilho da luz primeira e de Deus mesmo. Assim que seus membros
tenham recebido a plenitude de seu divino esplendor, transmitem generosamente a
luz, conforme ao plano de Deus, a aqueles que os seguem na escala.
Seria grave êrro para os santos guias, assim como para aqueles que
aprendem deles, fazer algo contra as disposições sagradas daquele que, em
última análise, é a fonte da perfeição. A desobediência, especialmente para
aqueles que anelam o divino esplendor de Deus e fixaram para sempre o olhar
naquele fulgor, seria um êrro. É o que convém ao seu
caráter sagrado, e mais, se estão configurados, na medida de suas forças, com
aquela luz.
Assim é que o nome de
hierarquia designa uma disposição sagrada, imagem da beleza de Deus, que
representa os mistérios da própria iluminação, graças à ordem sagrada de seu
grau e de seus saberes. Assemelha-se à própria fonte e, na medida do possível,
configura-se com sua própria origem. Porque a perfeição de cada um dos que
estão nesta sagrada ordem consiste principalmente em que, segundo a própria
capacidade, tenda à imitação de Deus. Mais admirável ainda, chega a ser, como
diz a Escritura, "cooperador de Deus" (I Cor. 3, 9;
I Tess. 3, 2) e reflexo da atividade divina na medida do possível.
Por isso, quando a
ordem sagrada dispõe que uns sejam purificados e outros purifiquem, uns sejam
iluminados e outros iluminem, uns sejam aperfeiçoados e outros aperfeiçoem, cada um imitará a Deus de fato segundo o modo
que convenha à sua função própria. O que nós chamamos bem-aventurança de Deus é
livre de toda dessemelhança. É plena de luz, sempiterna, perfeita, sem que lhe
falte nada. Ela é a que purifica, ilumina e aperfeiçoa. Ou melhor, é a santa
purificação, iluminação, perfeição. Está acima de toda purificação, acima de
toda iluminação; é a verdadeira fonte de perfeição, mais que perfeita. Causa de
toda a hierarquia, ultrapassa em muito todo o sagrado.
3. Em meu parecer, os
já purificados estão perfeitamente limpos de toda mancha e livres da menor
dessemelhança. Creio que todos os que recebem a iluminação sagrada estão cheios
de luz divina e levantam os santos olhos da mente até alcançar plena capacidade
de contemplação. Finalmente, penso que os perfeitos, longe já de toda
imperfeição, devem unir-se aos que contemplam os santos mistérios com ciência perfeccionante.
Justo é que os que
purificam façam participar a outros de sua abundante pureza. É justo também que
os que iluminam, mentes mais transparentes do que as
outras, gozosamente plenos de sagrado fulgor e
capazes tanto de receber como de transmitir a luz, a transbordem em todo lugar
e a difundam entre os que sejam dignos dela. Por último, penso que os que têm o
ofício de criar perfeição, muito entendidos na doutrina perfeccionante,
devem fazer que os perfeitos cheguem a ser como eles,
instruindo-os na doutrina sagrada do que já contemplam devotamente.
Resulta, portanto, que
cada ordem da hierarquia sagrada, segundo o correspondente a cada uma, eleva-se
até a cooperação com Deus. Com a graça e o poder que Deus concede faz coisas
que naturalmente são próprias da Deidade. Algo que Ele realiza supraessencialmente e em seguida o revela pela hierarquia
às inteligências que amam a Deus, para que estas o imitem dentro do possível.
CAPÍTULO
IV
1. Creio já ter
explicado o que entendo por hierarquia e devo, por isso, entoar um hino de
louvor às hierarquias angélicas. Com olhos que vejam mais além do mundo,
contemplarei as figuras sagradas que as Escrituras lhes atribuem para que,
através destas místicas representações, possamos elevar-nos até a simplicidade
de Deus. Então, com a devida adoração e ação de graças, glorificaremos a
Deidade, fonte de tudo o que podemos conhecer das hierarquias.
Antes de tudo, devemos
afirmar esta verdade: a Deidade supraessencial
estabeleceu a essência de todas as coisas e lhes deu a existência. É próprio da
Causa universal, Bondade suprema, chamar à comunhão consigo todas as coisas na
medida em que for a estas possível. Por isso todo ser
participa de certo modo da Providência que vem da Deidade supraessencial,
Causa de tudo. Na realidade, nada pode existir sem que dependa de algum modo
daquele que é fonte de todo ser. DEle
participam as coisas inanimadas pelo mero fato de existirem, pois todo ser deve
a própria existência à Deidade transcendente. Os viventes, por sua vez,
participam do poder que dá a vida e que ultrapassa toda a vida. Os seres
dotados de razão e inteligência participam da Sabedoria, perfeição absoluta,
primordial, que ultrapassa toda razão e inteligência. Fica claro, portanto, que
estes últimos seres estão mais próximos a Deus porque compartilham com Ele de
muitas maneiras.
2. Comparadas com as
coisas que se limitam a existir, com os seres de vida irracional, e inclusive
com nossa natureza racional, as santas ordens de seres celestes são
evidentemente superiores pelo que receberam da prodigalidade divina. Quanto ao
modo de conhecer, parecem-se a Deus. Com Ele conformam
suas inteligências. Por isso entram naturalmente em maior comunhão com a
Deidade, porque estão sempre direcionados às alturas, porque na medida do
possível tendem a concentrar-se no indeficiente amor
de Deus, porque de modo imaterial e em toda a pureza recebem a luz diretamente
de sua origem, e porque sua vida, guiada por semelhante luz, é plenamente
inteligente.
Estas inteligências são
as que mais rica e intimamente participam de Deus, e por sua vez são as
primeiras e mais abundantes em transmitir aos demais os mistérios escondidos da
Deidade. Pelo que corresponde-lhes mais do que a
ninguém o título de anjo ou mensageiro. São os primeiros a receber a iluminação
de Deus e por meio deles se nos transmitem as revelações que excedem
sobremaneira nosso alcance. Conforme diz a Escritura, a Lei nos foi dada pelos
anjos (Atos 7, 38-53; Gal. 3, 19; Heb.
2, 2). Em tempos anteriores e depois da Lei foram anjos os que guiaram até Deus
nossos ilustres antepassados. Faziam-no manifestando-lhes o que deviam fazer ou
afastando-os do erro e da vida de pecado para trazê-los ao caminho reto da
verdade. As sagradas hierarquias também lhes revelavam visões de mistérios
escondidos a este mundo, ou divinas profecias (Ex. 23, 20-23).
3. Talvez alguém diga
que Deus apareceu sem intermediários a alguns santos. Deve saber que as Santas
Escrituras afirmam claramente que "ninguém jamais viu a Deus" (Jo. 1, 18; Ex. 33, 30-23; I Tim.
6, 16; I Jo. 4, 12), e nunca ninguém verá o mais
recôndito da Deidade. É certo que Deus apareceu a pessoas santas. Deste modo
era conveniente que a Deidade se acomodasse à maneira de ser dos videntes. A
sagrada teologia chama com razão teofania às visões em que Deus, que não tem
figura, se manifesta em determinada semelhança e forma. Dispõe aos videntes
para um plano divino. Recebem iluminação de Deus e de algum modo são instruídos
sobre os mistérios divinos. Foi o poder de Deus quem dispôs os nossos
antepassados para vê-lo desta maneira (Gen. 17, 1; 18,
1; Gen. 18, 10; 32, 23; Ex. 24, 9-11; 33, 19-23; Is.
6, 1-8).
Não afirma a Escritura
que Moisés recebeu diretamente de Deus as sagradas ordenações da Lei (Ex. 19,
3-14; 20, 19; 24, 9-11; 25-31; 33, 12-17; 34, 9-10)?
Assim podia ensinar-nos com verdade que aquela legislação era cópia exata do
divino e sacrossanto. Porém a teologia nos mostra claramente que estas divinas
ordenações nos foram dadas por meio dos anjos para que aprendamos a mesma ordem
estabelecida por Deus, isto é, que mediante as hierarquias superiores os seres
inferiores elevam-se à Deidade. Ora, na Lei dada por Ele que é princípio supraessencial de toda ordem há disposições que afetam não
apenas aos graus superiores e inferiores daquelas inteligências. Ela
estabelece, ademais, que dentro de cada hierarquia as ordens e potências se
distribuem em três graus: o primeiro, o médio e o último, e que os mais
próximos à Deidade devem instruir aos menos próximos, guiando-os até a presença
de Deus, sua iluminação e comunhão.
4. Observo também que o
divino mistério do amor de Jesus aos homens foi primeiramente manifestado aos
anjos e por meio deles chegou a nós a graça do seu conhecimento. Foi o
santíssimo Gabriel quem declarou ao sacerdote Zacarias o mistério segundo o
qual, contra toda a esperança e pela graça de Deus, ele teria um filho que
seria o profeta da obra divino-humana de Jesus, o qual iria manifestar-se para
o bem e a salvação do mundo (Lc. 1,
11-20). Gabriel comunicou a Maria como se cumpriria nela o mistério divino da
inefável deiformação (Lc. 1, 26-39). Outro anjo explicou a José que verdadeiramente se
haviam cumprido as promessas feitas a seu antepassado Davi (Mt. 1, 20-25; II Sam. 7, 12-17). Outro, igualmente,
levou a boa nova aos pastores que por sua vida tranqüila
e separada das gentes estavam já de algum modo purificados. Juntou-se ao anjo
"uma multidão do exército celestial" para transmitir a todos os
habitantes do mundo o célebre hino de louvor (Lc. 2, 8-14).
Levantemos agora o
olhar às mais altas revelações das Escrituras. Observo, efetivamente, que
Jesus, Causa supraessencial de todos os seres que
vivem mais além do universo, veio tomar forma humana sem mudar sua própria
natureza. Depois nunca abandonou a forma humana que Ele havia
disposto e escolhido. Obediente, submeteu-a aos desejos de Deus Pai, os
quais os anjos tornaram manifestos. Anjos foram os que instruíram a José sobre
os planos do Pai para a fuga ao Egito e o retorno à Judéia (Mt. 2, 13; 19-22). O próprio Jesus recebeu ordens do
Pai por meio dos anjos. Não tenho necessidade de recordar a sagrada tradição do
anjo que confortou a Jesus (Lc. 22,
43; Mt. 4, 11) ou do fato que o próprio Jesus,
pela superabundante bondade com que conduziu a obra de nossa salvação é
enumerado entre os anjos da revelação como o nome de "Anjo do
Conselho" (Is. 9, 6). Não foi Ele na verdade um
anjo por ter-nos anunciado o que conheceu do Pai (Jo.
15, 15)?
CAPÍTULO
V
1. Esta é, tanto quanto
eu alcanço conhecer, a razão do nome anjo nas Escrituras. Porém creio agora
dever perguntar por que os teólogos chamam indistintamente anjos a todos os do
Céu, enquanto que, outras vezes, ao tratar das hierarquias celestes, reservam o
nome de anjos para a última ordem hierárquica, a que está subordinada aos graus
dos arcanjos, principados, autoridades e potências que as Escrituras reconhecem
superiores.
Em todas as hierarquias
sagradas o grau superior de cada ordem possui as iluminações e poderes das que
lhes estão subordinadas, porém estas não têm as próprias dos superiores. Os
teólogos (Sl. 103, 20; Mt. 25, 31; Heb. 1, 4) dão o nome
de anjo também às ordens mais altas e santas entre os seres celestes pelo fato
de que manifestam as iluminações procedentes da Deidade. Porém, falando
concretamente da última ordem dos seres celestes, não há razão para chamar
anjos aos membros dos principados, tronos ou serafins, porque os anjos não
participam dos supremos poderes destes. De fato, assim como esta ordem superior
eleva nossos inspirados hierarcas até onde eles conhecem da luz de Deus, as
ordens de grau superior elevam a seus subordinados, os anjos, até a Deidade.
Se a Escritura emprega
o mesmo nome para todos os anjos é porque os poderes celestes possuem em comum
uma capacidade, inferior ou superior, para identificar-se com Deus e entrar,
mais ou menos, em comunhão com a luz que dEle
procede.
Mas, para esclarecer
tudo isto, contemplemos com olhar puro as santas propriedades
de cada ordem celeste tal como a Escritura o revelou.
CAPÍTULO VI
1. Quantas são e como
se classificam as ordens celestes? Como cada uma das hierarquias alcança a
perfeição? Somente aquele que é Fonte de toda a perfeição poderia responder com
exatidão a estas perguntas, porém, pelo menos, elas conhecem as iluminações e
os poderes próprios de cada ordem e seu lugar nesta ordem sagrada e transcendente.
Pelo que nos diz respeito, não é possível conhecer o mistério das mentes
celestes nem entender como alcançam a mais alta perfeição. Podemos conhecer
apenas o que a Deidade nos manifestou misteriosamente por meio delas, já que
conhecem bem suas propriedades. Nada, portanto, tenho a dizer por mim mesmo de
tudo isto, e contento-me meramente em explicar o melhor que puder o que aprendi
dos santos teólogos sobre os anjos tal como eles no-lo
transmitem.
2. A Escritura enumera
em nove os nomes de todos os seres celestes, e meu glorioso mestre os
classificou em três hierarquias de três ordens cada uma. Segundo ele, o
primeiro grupo está sempre em torno de Deus, constantemente unido e Ele, antes
que todos os outros e sem intermediários. Compreende os santos tronos e as
ordens dotadas de muitas asas e muitos olhos que em hebraico chamam de
querubins e serafins. Conforme à tradição das Santas
Escrituras estão colocados imediatamente junto de Deus e ao seu redor, mais
perto que todos os demais (Is. 16, 1-7; Gen. 4, 24; Ez. 10, 1-22; Ef. 1, 21; Col. 1,
16; Jud. 1, 9). Este tríplice grupo, diz o meu célebre mestre, forma uma só
hierarquia que é verdadeiramente a primeira. Seus membros gozam de igual
estado. São os mais divinizados e os que recebem primeiro e mais diretamente as
iluminações da Deidade (Ez. 1, 18;
Is. 6, 2; Ez. 1, 6).
O segundo grupo, diz
ele, é composto das potestades, dominações e virtudes. O terceiro, no final das
hierarquias celestes, é a ordem dos anjos, arcanjos e principados.
CAPÍTULO
VII
1. De acordo com esta
ordem das sagradas hierarquias, dizemos que os nomes dados às inteligências
celestes significam os modos distintos de receber a propriedade deiforme. Os
que sabem hebraico reconhecem que o santo nome
"serafim" significa inflamado ou incandescente, isto é, enfervorizante (Is. 6, 2-6).
O nome querubim
significa plenitude de conhecimento ou transbordante de sabedoria (Gen. 3, 24; Ex. 25, 18-22; 37, 6-9; Num. 7, 89; I Sam. 4, 4;
I Re. 6, 23-28; 8, 6-7; Sl. 18, 10; 80, 1; 99, 1; Is. 37, 16; Ez. 10, 3-22; Ex. 1,
4-28). Com razão, portanto, os seres mais elevados constituem a primeira
hierarquia, a de mais alto grau, os mais eficientes por estarem mais próximos
de Deus. Situados imediatamente ao seu redor, recebem as mais primorosas
manifestações e perfeições de Deus. Por isso chamam-se "enfervorizantes" e tronos. Pelo mesmo motivo são
também chamados transbordantes de sabedoria. Nomes que indicam seu constante
configurar-se com Deus.
O nome serafim
significa incessante movimento em torno às realidades divinas, calor
permanente, ardor transbordante, em movimento contínuo, firme e estável,
capacidade de gravar sua marca nos subordinados fixando e levantando neles
chama e amor parecidos; poder de purificar por meio de chama e raio luminoso;
aptidão para manter evidente e sem esmorecimento a própria luz e sua
iluminação, poder de afugentar as trevas e qualquer sombra obscurecedora.
O nome querubim, poder
para conhecer e ver a Deus; receber os melhores dons de sua luz; contemplar a
divina Beleza em sua pura fonte; acolher em si a plenitude dos dons portadores
de sabedoria e compartilhá-los generosamente com os inferiores, conforme ao
plano benfeitor da sabedoria transbordante.
O nome dos sublimes e
mais excelsos tronos indica que estão muito acima de toda a deficiência
terrena, como se manifesta pela sua ascensão até os cumes; que estão sempre
afastados de qualquer baixeza; que passaram a viver completa e eternamente na
presença daquele que é realmente o Altíssimo; que livres de toda a paixão e
cuidados materiais estão sempre prontos para receber a visita da Deidade; que
são portadores de Deus e estão prontos como os servos para acolher a Ele e aos
seus dons (Sl. 80, 1; 99, 1;
Col. 1, 16).
2. Esta é a explicação,
na medida em que podemos humanamente entendê-lo, do motivo pelo qual são e se
chamam assim. Falta-me dizer o que entendo pela sua hierarquia. Creio já ter
dito suficientemente que toda hierarquia tem como fim imitar sempre a Deus até
configurar-se com Ele, e cumpre o ofício de receber e transmitir a purificação
imaculada, a luz divina e o saber que leva à perfeição. Devo expor aqui em
palavras, oxalá dignas destas inteligências
superiores, o que as Sagradas Escrituras revelam de suas hierarquias.
Os primeiros seres têm
seu lugar junto à Deidade, a quem devem o que são.
Estão e estiveram no seu vestíbulo. Superam todo poder, visível ou invisível,
que esteja submetido a mudança. Constituem uma só
hierarquia completamente igual.
Temos que pensar que
são totalmente puros, não porque estejam livres de qualquer mancha ou feiúra profana, nem porque imagens terrenas os sujem. São
puros porque transcendem completamente toda debilidade e graus inferiores dos
santos. Sua pureza suprema os coloca acima de outros poderes deiformes; faz com
que adiram inquebrantavelmente a sua própria ordem movendo-se eternamente em
constante amor de Deus. Não conhecem a experiência de terem-se rebaixado a
coisas inferiores, pois têm como propriedade serem
semelhantes a Deus, cimentos eternamente indeficientes,
inamovíveis e totalmente incontaminados.
São também
"contemplativos", não porque contemplem imagens sensíveis ou do
entendimento, nem porque se elevem a Deus em variada contemplação das Sagradas
Escrituras. São-no porque estão cheios de uma luz superior que excede todo
conhecimento, e porque são invadidos por uma tríplice luz transcendente daquele
que é princípio e fonte de toda a beleza. São contemplativos também porque
conseguiram entrar em comunhão com Jesus, não por meio de símbolos sagrados que
representem a bondade de Deus atuando desde fora, mas porque realmente têm
intimidade com Ele e participam no conhecimento profundo das luzes divinas que
imediatamente operam externamente. Privilégio especial de ser como Deus, na
medida em que lhes é possível. Com seu poder, antes de tudo participam em Sua
atuação e em suas amáveis virtudes.
São perfeitos, não pela
iluminação que os capacita para entender profundamente os mistérios sagrados,
mas pela plenitude de sua deificação primordial, seu transcendente e angélico
conhecimento da atuação de Deus. Deus mesmo os instrui hierarquicamente por
meio de outros santos seres. Puderam conseguí-lo
graças à capacidade que têm de levantar-se até Ele. Poder que é a marca de
superioridade sobre as demais ordens. Estão fixos junto à perfeita e indeficiente pureza e, na medida em que lhes é possível,
são atraídos à contemplação da beleza imaterial e intelectual. Por ser os primeiros ao redor de Deus são hierarquicamente os
mais altos. O verdadeiro Princípio de perfeição os instrui sobre as razões
inteligíveis das obras de Deus.
3. Os teólogos
afirmaram claramente que entre os seres celestes tudo o que as ordens
inferiores conhecem das obras de Deus recebem-no em forma conveniente das
superiores. No entanto, é a própria Deidade que, na medida do possível, ensina
iluminando aos de grau mais elevado. Referem-nos que alguns são santamente
ensinados pelos de grau superior. Alguns aprendem que o Rei da Glória, aquele que
subiu aos Céus em forma humana, é o "Senhor dos poderes celestiais" (Sl. 24, 10). Outros, em suas
dúvidas sobre a natureza de Jesus, adquirem conhecimento de sua obra divina com
proveito da humanidade. É Jesus mesmo quem os instrui na obra que misericordiosamente
levou a efeito por amor ao homem: "Eu sou o que fala em justiça, o
poderoso para salvar" (Is. 63,
1).
Porém aqui há algo
surpreendente. Os primeiros dos seres celestes, os superiores a todos,
mostram-se circunspectos assim como os de grau intermediário quando desejam
iluminação a respeito da Deidade. Não perguntam diretamente: "Por que são
vermelhos os teus vestidos?" (Is. 63, 2). Começam por perguntarem-se uns aos outros, mostrando
assim seus intensos desejos de aprender e de saber como são as operações de
Deus. Não se antecipam ao derrame da luz com que Deus os alimenta.
Por isso, a primeira
hierarquia das inteligências celestes está hierarquicamente dirigida pela Fonte
de toda a perfeição, porque pode elevar-se diretamente até Ela. Recebe, segundo
sua capacidade, plena purificação, luz infinita, perfeição completa.
Purifica-se, ilumina-se, e aperfeiçoa-se até se tornar isenta de qualquer
debilidade, saturada de pura luz. E consegue alcançar a perfeição como
participante do conhecimento e da sabedoria primordial.
Em resumo, podemos
dizer com razão que a purificação, iluminação e perfeição, as três são plena
participação da ciência divina. Esta purifica de toda ignorância dando a cada
um, segundo sua capacidade, conhecimento dos mistérios mais elevados. Ilumina
com a mesma sabedoria de Deus, a qual também purifica as manchas ainda não
advertidas, porém que agora são vistas, sendo a luz mais abundante. Ademais,
mediante esta mesma luz, aperfeiçoa o conhecimento com fulgores mais
brilhantes.
4. Esta é, segundo meus
conhecimentos, a primeira hierarquia dos seres celestes, o círculo mais próximo
de Deus (Is. 6, 2; Ap. 4,
4). Gira sem cessar com plena simplicidade em torno ao que é eterno
conhecimento, estabilidade eternamente móvel. Para sempre e totalmente, tal
como convém aos anjos. Com um só olhar, puro, pode experimentar múltiplas
contemplações bem aventuradas e também receber diretamente os simples raios
luminosos. Sacia-se com alimento divino, abundante, porque vem do banquete
celestial. Único, porque os revigorantes dons de Deus conduzem ao Uno em
unidade, sem diversidade.
Esta primeira
hierarquia é particularmente digna de familiaridade com Deus e coopera com Ele.
Imita, enquanto possível, a beleza do poder e atividade próprios de Deus, com
elevado conhecimento de muitos mistérios divinos. Pelo que as Escrituras
transmitiram aos que habitam na terra os hinos que cantam estes anjos da
primeira hierarquia (Apoc. 4, 8;
6, 10; 11, 16; 11, 5; 15, 2; 19, 1-8). Desta maneira fica santamente manifesta
a sua iluminação transcendente. Alguns destes hinos são, para dizê-lo com uma
imagem sensível, o "ruído de um rio caudaloso" (Ez.
1, 24; Ap. 14, 2; 19, 6) quando proclamam:
"Bendita seja em seu lugar a glória do Senhor" (Ez.
3, 12). Outros cantam com veneração aquele famoso hino de louvor a Deus:
"Santo, Santo, Santo, Senhor dos exércitos! A terra está cheia de sua
glória" (Is. 6, 3; Ap.
4, 8).
Em meu livro
"Hinos Divinos" já expliquei o melhor que pude os sublimes louvores
que aquelas santas inteligências cantam sobre os Céus. Creio que ali expus tudo
o que convinha dizer. Pelo que diz respeito ao meu propósito, limito-me a
repetir aqui que quando a primeira ordem recebeu, segundo a sua capacidade, a
iluminação divina diretamente de Deus, transmite-a, como é próprio de uma
hierarquia benfeitora, a seus inferiores imediatos. Seu ensinamento reduz-se a
isto: É justo e bom que as inteligências deíficas, enquanto possível, conheçam
e honrem à adorável Deidade, que merece todo o louvor, ainda que esteja muito
acima de tudo. São estas inteligências, por viverem em conformidade com Deus, o
lugar onde mora a Deidade, como diz a Escritura (Is. 66, 1; Num. 10, 36; I Cron. 6, 31; II Cron. 6, 41; Ex. 37,
7-9; I Sam. 4, 4; II Sam. 6, 2; II Re. 19, 15; Sl.
80, 1; 99, 1).
Este primeiro grupo
transmite o ensinamento de que a Deidade é Unidade, Una em Três Pessoas, que
sua esplêndida providência se estende desde os seres mais elevados no Céu até
às ínfimas criaturas da terra. É a Causa e Fonte que transcende a fonte de todo
ser e supraessencialmente atrai todas as coisas ao
seu perene abraço.
CAPÍTULO VIII
1. Vou passar agora à
categoria das inteligências celestes de ordem intermediária. Com os olhos do
espírito contemplarei o melhor que puder as dominações e a maravilhosa visão
das divinas virtudes e potestades (Ef. 1, 21; 3, 10; Col. 1. 16; 2, 10; I Pe. 3, 22; Rom. 8, 38).
Cada denominação dos seres tão superiores a nós apresenta maneiras distintas de
imitar a Deus e configurar-se com Ele.
O nome revelador de
"dominações" significa, creio eu, um elevar-se livre e desagrilhoado
de tendências terrenas, sem inclinar-se a nenhuma das tirânicas dessemelhanças
que caracterizam aos duros domínios. Como não toleram nenhum defeito, estão
acima de qualquer servidão. Limpas de toda dessemelhança, esforçam-se
constantemente em alcançar o verdadeiro domínio e fonte de todo o senhorio.
Benignamente, e segundo sua capacidade, recebem elas e seus inferiores a
semelhança do Senhor. Desdenham as aparências vazias, e se encaminham
totalmente ao verdadeiro Senhor. Participam o mais que
podem na fonte eterna e divina de todo domínio.
A denominação de santas
"virtudes" alude à fortaleza viril, inquebrantável em toda obra, ao
modo de Deus. Firmeza que exclui toda preguiça e moleza, enquanto permanece sob
a iluminação divina que lhes é dada, e ergue firmemente até Deus. Longe de
desprezar por preguiça o impulso divino, dirige-se diretamente à potência supraessencial, fonte de toda a fortaleza. De fato, esta
firmeza chega a ser, dentro do possível, verdadeira imagem da Potência de que
toma forma, e à qual está firmemente orientada por ser ela a fonte de toda a
fortaleza. Ao mesmo tempo transmite aos seus inferiores o poder dinâmico e
divinizante.
As santas
"potestades", como seu nome indica, tem o mesmo grau que as
dominações e as virtudes. Estão harmoniosamente dispostas, sem confusão, para
receber os dons de Deus. Indicam, ademais, a natureza ordenada do poder
celestial e intelectual. Longe de abusar tiranicamente de seus poderes,
causando dano aos inferiores, erguem-se até Deus harmoniosa e
indefectivelmente; em sua bondade elevam consigo às
ordens inferiores. Parecem-se, dentro do possível, ao poder que é fonte e autor
de todo poder.
Deste modo, a
hierarquia das inteligências celestes mostra sua configuração com Deus. Como
fica dito, assim alcança a purificação, iluminação e perfeição, recebendo de
Deus as iluminações que chegam já através da primeira ordem hierárquica.
2. Esta transmissão de
uns anjos a outros simboliza a perfeição a qual, como vem de longe, vai
diminuindo a sua luz ao passar da primeira à segunda ordem. Os santos mestres
que nos iniciaram nos mistérios de Deus ensinam que a perfeição das realidades
divinas, quando elas se revelam diretamente, é superior à participação por
visões que chegam de outros modos. De igual modo, creio eu, participam mais
perfeitamente de Deus os anjos que lhe são mais imediatos que os outros aos quais a participação chega por mediadores. Assim, pois,
utilizando-nos dos termos tradicionais, as primeiras inteligências aperfeiçoam,
iluminam e purificam às de grau inferior de tal maneira que estas, por terem
sido elevadas através das primeiras até à fonte universal e supraessencial,
participam, segundo sua capacidade, da purificação, iluminação e perfeição do
Único que é fonte de toda a perfeição.
O princípio divino de
toda ordem estabeleceu a lei universal de que os seres do segundo grupo recebam
a iluminação da Deidade por meio dos seres do primeiro. Como podes comprová-lo,
isto é freqüentemente afirmado pelos autores
sagrados.
Deus, por amor à
humanidade, corrigiu Israel para que voltasse santamente ao caminho da
salvação. Entregou-o à vingança das nações bárbaras, para que se convertesse de
coração. Deste modo Deus reafirmava sua vontade de levar até à perfeição aos
homens colocados sob a sua especial providência. Em seguida, libertou
misericordiosamente a Israel da catividade (Is. 61, 1; Lc.
4, 18), restabelecendo-o em seu primeiro estado. Zacarias, teólogo, teve uma
visão a este respeito. Era um anjo da primeira ordem, um dos mais próximos de
Deus, que recebia diretamente dEle
o que a Escritura chama "palavras de consolo" (Zac.
1, 13). Já disse que o nome anjo é comum a todos os seres celestes. Outro anjo
de grau inferior foi ao encontro do primeiro e dele recebia iluminação. Deste
modo, instruído por ele como por um hierarca nos planos de Deus, o anjo por sua
vez confiou ao teólogo que
"multidões
voltarão outra vez a povoar plenamente Jerusalém". Zac.
2, 4
Ezequiel, outro
teólogo, declara que tudo isto foi santamente disposto pela mesma Deidade que
em sua glória, superior a toda a glória, tem à sua disposição os querubins (Ez. 10, 18). Deus, levado por amor
paternal aos homens, queria a correção para o proveito de Israel, e com um ato
de eqüidade digna dEle determinou separar os inocentes dos culpados. O
primeiro a ser nisso instruído, depois do querubim, foi aquele que estava
cingido com cinturão seráfico e vestia um manto até os pés em sinal de sua
missão hierárquica (Ez. 9, 2;
10, 6-8). Ele, por sua vez, comunicava a decisão divina aos outros anjos, os
que levavam machados (Ez. 9,
1-3). Assim cumpria as ordens da Deidade, fonte da ordem que mandava atravessar
toda Jerusalém e pôr um sinal sobre a fronte dos inocentes. Disse aos outros:
"Passai pelo meio da cidade e feri. Não sejam
compassivos vossos olhos, nem tenhais compaixão alguma. Porém não vos
aproximeis de nenhum dos que trazem o sinal"Ez. 9, 5-6
Que dizer do que
anunciou a Daniel que "a ordem está dada" (Dan. 9,
23)? Ou do primeiro que apanhou o fogo do meio dos querubins (Ez. 10, 2)? Ou do querubim que
colocou fogo nas mãos do que vestia a "estola sagrada" (Ez. 10, 6-8), coisa que mostra
claramente a boa ordem que existe entre os anjos? Que diremos daquele que
chamou ao diviníssimo Gabriel e lhe disse:
"Explica
a este a visão"? Dan. 8, 16
CAPÍTULO IX
Falta-nos ainda
contemplar a última hierarquia dos anjos, os deiformes principados, arcanjos e
anjos (Ef. 1, 21; 3, 10;
Col. 1, 16; 2, 10; I Cor. 15, 24; Ef. 6, 12; Col. 2,
15; I Tess 4, 16; Jud.1, 9). Creio que antes de tudo o mais devo explicar o
significado destes nomes sagrados o melhor que me seja possível. O termo
"principados celestes" refere-se ao mando principesco que aqueles
anjos exercem à imitação de Deus. Trata-se de uma
referência à ordem sagrada mais própria para exercer poderes de príncipes; à
capacidade de orientar-se plenamente ao princípio que está acima de todo
princípio e, como príncipes, guiar os outros até Ele. Poder de receber
plenamente a marca do Princípio de princípios e, mediante o exercício eqüitativo de seus poderes de governo, dar a conhecer este supraessencial princípio de toda ordem.
A ordem dos arcanjos
relaciona-se com os anjos por servir de intermediária para comunicar a estes as
iluminações que recebem de Deus por meio das primeiras hierarquias. Os arcanjos
as comunicam aos anjos e por meio destes a nós, na medida em que somos capazes
de ser santamente iluminados.
Conforme já disse, os
anjos completam o conjunto hierárquico das sagradas inteligências. Constituem eles o grau inferior. Dá-se o nome de anjos a
este grupo, de preferência a outros, porque sua hierarquia é a mais próxima de
nós, a que nos torna manifesta a revelação e a que está mais próxima do mundo.
Já disse que a ordem superior, assim chamada por estar mais próxima aos
mistérios divinos, influi hierarquicamente no segundo grupo, que se compõe das
santas dominações, virtudes e potestades. A segunda influi sobre a hierarquia
dos principados, arcanjos e anjos; é ela que faz as revelações e, segundo seus
graus distintos, preside as hierarquias humanas para que a elevação e retorno a
Deus, comunhão e união com Ele, ocorra como é devido. Mesmo assim, todas as
hierarquias participam eqüitativamente das graças que
bondosamente Deus lhes dá. Portanto, os anjos velam por nossa hierarquia humana
como o refere a Escritura. Elas chamam a Miguel de
príncipe do povo judeu, e designam diversos anjos para governar outras nações, porque
"o
Altíssimo estabeleceu os termos dos povos segundo o número dos anjos". Dt. 32, 8; Dn. 10, 13-21; 12, 1
3. Talvez alguém
pergunte por que somente o povo judeu alcançou a luz da Deidade. A isto responde-se dizendo que os anjos cumpriram perfeitamente seu
ofício de guardiões e que não é falta sua se outras nações se desviaram
adorando a falsos deuses. Na realidade, foram elas, por sua própria iniciativa,
as que se afastaram do caminho que leva a Deus. A adoração absurda com que elas
imaginavam agradar a Deus mostra seu egoísmo e sua presunção, como se prova
pelo que sucedeu ao povo judeu:
"Rejeitaste a ciência" [de Deus],
está
escrito,
"e seguiste o chamado de teu coração".
Os. 4, 6;
Jer.
7, 24; Os. 5, 11
Nem está
necessariamente predeterminada a nossa vida, nem a liberdade é obstáculo que
impeça a divina Providência de ser fonte de iluminação sobre aqueles que estão
sob o seu cuidado. De fato, o que ocorre é isto. A desproporção dos olhos da
inteligência faz com que, sendo copiosíssima a iluminação da bondade do Pai, ou
se perca inteiramente, ou se torne inútil por rejeitá-la, ou que participem
dela com desigual medida, em grande ou pequena quantidade, obscuramente ou com
claridade. Enquanto isso, o refulgente manancial de luz continua sendo único e
simples, sempre igual, sempre transbordante.
O mesmo pode dizer-se
de outras nações, povos de onde nós somos provenientes, de maneira que podemos
também levantar o olhar ao pélago infinito e generoso desta Luz divina, que
derrama e difunde seus dons sobre todos os seres. Não foram deuses estranhos que
assim o dispuseram. Único é o princípio universal e os
anjos os quais, colocados à frente das nações, orientaram a Ele todos os que
quiseram seguí-los. Pensa em Melquisedec.
Estava pleno de amor de Deus e era sacerdote, não de falsos deuses, mas do
verdadeiro Deus altíssimo (Gen. 14, 18-22; Sl. 110, 4; Heb. 7, 1). Os sábios
das ciências sagradas não se contentaram em chamar Melquisedec
de amigo de Deus. Descreveram-no como sacerdote para fazer ver aos homens
sensatos que o seu ofício não era simplesmente converter-se ao verdadeiro Deus mas, ainda mais, como grão sacerdote, guiar a outros em seu
caminho de ascensão ao único Deus verdadeiro.
4. Aqui tens outro
motivo para entender a hierarquia. O anjo tutelar dos egípcios fêz ver ao Faraó que existe uma Providência
solícita e com senhorio poderoso sobre todas as coisas. O mesmo fêz o anjo dos babilônios com o chefe de sua nação. Puseram
à frente daquelas nações a servos do verdadeiro Deus, intérpretes das visões
que Ele enviou por meio de seus anjos, os quais as revelaram a José e a Daniel
(Gen. 41, 1; Dn. 2, 1; 4,
1-27). Um só é o Senhor de todos, e única a sua providência. Não imaginemos,
por conseguinte, que Deus vela tão somente pelo povo judeu e que outros deuses
ou anjos, em condições de igualdade ou parecendo-se com Ele, estão à frente de
outros povos. As passagens que poderiam sugerir tal idéia
devem interpretar-se em sentido sagrado (Dt. 32, 8; Dn. 10, 13-21), pois não
podem significar que Deus compartilhe o governo da humanidade com anjos
estranhos, nem que governa ao povo de Israel como se fosse o seu Príncipe ou
Chefe nacional.
A Providência do
Altíssimo, que é única para todos, mandou anjos que guiassem os povos à sua
salvação, porém só Israel foi o que se converteu à Luz e confessou o verdadeiro
Senhor. Por isso a Escritura mostra com as seguintes palavras que Israel
escolheu por si mesmo adorar ao verdadeiro Deus:
"Veio
a ser a porção do Senhor". Gen. 32, 9
A teologia diz também
que Miguel está à frente do povo judeu (Dan. 10, 21),
com o que significa claramente que foi assinalado um anjo a Israel, como às
demais nações, para que por seu meio reconheça a aquele que é princípio de
governo único e universal. Pois única é a Providência para todo o mundo, supraessência que transcende todo poder visível e
invisível. Há anjos à frente de cada nação, com a missão de guiar até a
Providência, como sua própria fonte, a todos os que queiram segui-los de boa
vontade.
CAPÍTULO
X
1. Concluímos,
portanto, que o primeiro grupo dos seres inteligentes mais próximos de Deus
está hierarquicamente ordenado pelas iluminações procedentes do Princípio de
toda perfeição e eleva-se até Ele sem necessidade de intermediário. Eles obtém a purificação, iluminação e perfeição graças ao
dom de secretas e resplandecentes luzes da Deidade. Luzes
mais secretas porque são mais intelectuais, mais unificadoras e
unificantes. Mais brilhantes porque recebem-nas
diretamente, antes que ninguém em sua totalidade. Projetam-se com tanto maior
fulgor quanto mais próximas estejam de seu manancial.
Depois desta ordem,
temos a segunda, e em seguida a terceira. Depois a nossa hierarquia, conforme à sua própria natureza e ao disposto pela harmoniosa fonte,
com divina equidade, para que toda a ordem se eleve até o Princípio e o Término
de toda a harmonia, muito acima de qualquer outro princípio.
2. Cada uma das ordens
é portadora de revelações e notícias das ordens que a precedem. A primeira o
transmite diretamente de Deus, enquanto que as outras, conforme sua posição, o
comunica segundo o recebem de seus anteriores a quem Deus o inspirou. Porque a
harmonia supraessencial do universo dispôs
providencialmente sobre todos os seres dotados de razão e inteligência a fim de
que sejam retamente dirigidos e santamente elevados. De maneira apropriada ao
caráter sagrado de cada uma, esta harmonia ordenou os grupos distribuindo-os
hierarquicamente, conforme vimos, em poderes superiores, médios e inferiores.
Ademais, distribuiu-os eqüitativamente segundo o grau
de participação divina que cada uma possui. Mais ainda, os teólogos nos dizem
que os santíssimos serafins se "aclamam uns aos outros" (Is. 6, 3), com o que, segundo o
entendo, manifestam que os da primeira hierarquia transmitem aos demais o que
conhecem de Deus.
3. Há algo mais que
posso razoavelmente acrescentar aqui. Cada inteligência, celeste ou humana,
possui seu próprio conjunto de primeiras, médias e ínfimas ordens e poderes,
que manifestam, na proporção de suas capacidades, a faculdade de elevar-se,
como fica dito, segundo as elevações hierárquicas próprias de cada uma.
Conforme a esta ordenação, cada uma das hierarquias, na medida de suas
possibilidades e em que lhe é permitido, participa daquela Purificação que
excede a toda purificação; daquela luz superabundante, daquela Perfeição que está
acima de toda purificação. Não há nada absolutamente perfeito. Nada que não
tenha necessidade de aperfeiçoar-se. Somente o Ser realmente perfeito em Si
mesmo, acima de toda a perfeição.
CAPÍTULO
XI
1. Feitas já todas as
distinções, é justo que consideremos agora por que costumamos chamar de
"poderes celestiais" a todos os anjos (Dn. 3, 61; Sl. 24, 10; 80, 5; 80, 8;
80, 15; 80, 20; 103, 21). Não podemos generalizar a palavra "poderes"
como fizemos com "anjos". Não podemos afirmar que a ordem dos santos
poderes seja a última de todas, nem que a ordem dos seres superiores participe
da santa iluminação dada aos inferiores, nem que estes últimos participem no
que recebem dos superiores. Assim, pois, a denominação "poderes
celestiais" não pode estender-se até compreender todas as inteligências
divinas, o mesmo que não podemos fazer com serafins, tronos e dominações. As
ordens da última hierarquia não participam dos atributos próprios da superior.
Não obstante, chamamos "poderes celestiais" aos anjos e aos
superiores a eles, aos arcanjos, aos principados, às potestades que os teólogos
consideram inferiores aos "poderes". Dizemos o mesmo dos outros
hierarquicamente superiores.
2. No entanto, sempre
que empregamos a denominação "poderes celestiais" em geral, para
todos estes seres, não confundimos os atributos próprios de cada ordem.
Observamos claramente que, por razões superiores a este mundo, nas
inteligências divinas acha-se a tríplice distinção de ser, poder e ação.
Suponde agora que, sem pensá-lo, chamemos a alguma ou a todas elas "seres
ou poderes celestiais". Reconhecemos, portanto, que falando assim de tais
seres e poderes estamos nos utilizando de uma expressão fundamentada no ser e
poder de todas as ordens. Não se trata de atribuir indistintamente aos seres
inferiores as eminentes propriedades dos santos "poderes" já
descritos. Isto perturbaria o princípio de ordem que regula as hierarquias
angélicas e exclui qualquer confusão.
Pela razão que expus
com tanta freqüência e retidão, as hierarquias
superiores possuem em grau eminente os atributos de seus inferiores, enquanto
que estes últimos não possuem a plenitude transcendente dos mais altos, se bem
que a iluminação pura do Princípio lhes é parcialmente transmitida por meio dos
primeiros na proporção da capacidade receptiva dos últimos.
CAPÍTULO
XII
1. Os que gostam de
estudar as Escrituras encontram aqui outro problema. Se os últimos não
participam em tudo o que dispõem os mais altos, por que as Escrituras chamam a
nosso hierarca humano de "anjo do Senhor onipotente" (Mal. 2 ,7; Mal. 3, 1; Gal. 4, 14; Apoc.
2-3)?
2. Creio que esta
expressão não contradiz de modo algum o que foi dito anteriormente.
Reconhecemos que as ordens inferiores não possuem a plenitude nem o poder
completo correspondente às superiores. Porém participam proporcionalmente no
poder daqueles como parte da harmoniosa, universal e eqüitativa comunhão em que todos se entrelaçam. Deste modo,
mesmo no caso de que a ordem dos santos querubins possua sabedoria e ciência
mais elevadas, também as ordens dos seres inferiores compartilham em menor
proporção sua sabedoria e ciência, ainda que seja inferior e parcial. De fato,
todos os seres inteligentes deificados participam na sabedoria e na ciência. Eles
se diferenciam segundo que esta participação venha diretamente da fonte ou de
modo indireto e inferior, conforme à capacidade de
cada um. Isto se pode dizer de todos os seres-inteligências deificados, e assim
como a primeira ordem possui em plenitude os santos atributos de suas
inferiores, estes têm também os dos superiores, ainda que em menor proporção,
não de igual modo.
Pelo que não vejo
nenhum inconveniente em que as Escrituras chamem de "anjo" inclusive
a nosso hierarca (o bispo). Possui a propriedade de ser, dentro do possível,
como os anjos, um mensageiro. Têm, ademais, a missão de imitar, segundo suas
possibilidades, o poder revelador dos anjos.
3. Poderás também
advertir como a Escritura chama "deuses" não apenas aos seres
celestes, que estão muito acima de nós (Sl. 82, 1; 95, 3; Gen. 32, 28-30), mas também aos homens
piedosos que entre nós se distinguem por seu amor a Deus (Ex. 4, 16; 7, 1; Sl. 45, 6; 82, 6; Jo. 10, 34).
Deus é mistério que transcende todo ser. É supraessencial
a todo ser. Nada há que de nenhum modo possa comparar-se com Ele. No entanto,
todo ser dotado de inteligência e razão, que tenda com todas as suas forças à
união com Deus, que procure imitá-lo incessantemente o quanto possa, tal homem bem merece que o chamemos de divino.
CAPÍTULO
XIII
1. Há algo mais que
devemos considerar do melhor modo possível. Por que se diz que um dos teólogos
recebeu a visita de um serafim (Is. 6, 6-7)? Qualquer um poderia estranhar o fato de que tivesse
vindo purificar ao intérprete um dos seres superiores e não dos anjos
inferiores.
2. Alguns, de acordo
com a teoria anteriormente exposta, sobre a reciprocidade dos
seres-inteligências, dizem que a Escritura não afirma expressamente que tivesse
vindo purificar ao teólogo um dos seres-inteligências dos mais próximos a Deus
dentro da primeira hierarquia. Ela refere-se aqui, dizem, a um daqueles anjos
encarregados de nós, que tinha a missão de purificar ao profeta. Chamaram-no de
serafim pela semelhança de ter-lhe que apagar os pecados mediante o fogo e
reestabelecer ao recém purificado na obediência a
Deus. Por conseguinte, segundo esta interpretação, a passagem do serafim não se
referiria a um dos que assistem ao trono de Deus; tratar-se-ia de alguns dos
poderes encarregados de purificar-nos.
Digamo-lo mais
claramente com exemplos ao nosso alcance, ainda que sejam inadequados em
relação a Deus. Os raios da luz solar atravessam com
maior esplendor a primeira capa material. Porém quando se chocam com corpos
sólidos parecem mais escuros e difusos, porque é matéria menos apta para a
passagem da luz desbordante. A obstrução se faz cada vez maior até que por fim
não há mais caminho para a luz. O mesmo ocorre com o calor do fogo. Passa mais
facilmente por corpos condutores que o recebem melhor e se lhe parecem mais.
Porém quando bate em substâncias refratárias não produz efeito, ou apenas deixa
leve rastro. Isto se observa claramente quando o fogo passa por coisas que lhe
são bem dispostas e depois por outras que não lhe são afins. O mesmo quando o
fogo toca primeiro coisas inflamáveis e depois, por
meio destas, chega à água ou a outras que se aquecem com dificuldade.
Conforme a esta
harmoniosa lei da natureza, a admirável Fonte de toda ordem visível e invisível
derrama maravilhosamente (Sab. 7,13) os plenos e primordiais fulgores de sua
luz esplêndida sobre os seres da primeira hierarquia. As ordens seguintes, por
sua vez, participam daqueles raios através dos primeiros. Primeiros em conhecer
a Deus, desejam mais que outros seres deificados; mereceram chegar a ser, dentro do possível, os primeiros operários em poder e
ação semelhante a Deus. Estimulam amavelmente aos seguintes a que compitam com eles.
De boa vontade distribuem aos inferiores os raios luminosos recebidos (Is. 6, 2). Estes, por sua vez,
transmitem-nos a outros ainda mais baixos. Deste modo, em níveis distintos, os
que precedem transmitem aos seguintes a luz divina que
recebem. Luz que se reparte proporcionalmente a todos segundo a medida com que
a possam receber.
Certo. Deus mesmo é
realmente a fonte de luz para todos os que são iluminados, pois Ele é a
verdadeira Luz. Ele é causa do ser e da visão. Porém está determinado que, à
imitação de Deus, a luz passe do ser superior ao inferior. Por isso os outros
seres angélicos seguem à primeira hierarquia de seres-inteligências no Céu.
Depois de Deus, esta é a fonte de todo conhecimento divino e de sua imitação.
Por meio desta hierarquia chega até nós toda a
iluminação divina. A atividade sagrada, realizada à imitação de Deus, é
atribuída, por um lado, a Ele como Causa última, e por outro, aos
seres-inteligência mais próximos a Deus, deiformes, como primeiros mestres dos
mistérios divinos. Os anjos da primeira hierarquia possuem melhor do que os
demais a propriedade ígnea e uma participação maior na sabedoria divina que
lhes é dada; o conhecimento supremo das iluminações divinas e propriedade dos
"tronos", que significa o poder de estar abertos para receber a Deus.
As hierarquias inferiores participam do fogo, da sabedoria, do conhecimento de
Deus, e estão também dispostas a acolhê-lo. Porém em menor grau e com a
condição que se fixem nos seres-inteligências da primeira hierarquia, por meio
dos quais, como mais dignos imitadores de Deus, se tornam semelhantes e Ele. As
hierarquias segundas participam, por meio das primeiras, nestas santas
propriedades, atribuem-nas às primeira hierarquias
que, depois de Deus, são as supremas.
4. A pessoa que opinava
conforme ficou dito sustentava que, na visão do profeta, era um daqueles santos
anjos encarregados de nós. Sob a orientação luminosa deste anjo elevou-se a tal
contemplação que, se me é lícito falar em símbolos, pôde contemplar os seres de
grau superior situados debaixo, ao redor e com Deus.
Mais além daqueles seres, pôde admirar o cimo, inefavelmente superior, que
ultrapassa todo princípio, põe o seu trono entre eles e os domina a todos (Gen. 1, 25). Por esta visão o profeta compreendeu que a Deidade,
por sua absoluta supraessência, ultrapassa todo o
poder, visível e invisível.
É completamente
independente de todas as coisas. Não se pode comparar nem sequer com as mais
nobres. É causa e fonte de todo o ser e de que todo ser seja bom (Is. 6, 2), de seu fundamento
imutável, inclusive os mais elevados.
O profeta conheceu
então os poderes deificantes dos santíssimos
serafins. "Serafim" significa ardente. Vou explicá-lo brevemente, o
melhor que me for possível, como o poder do fogo faz elevar-se até à semelhança
com Deus. A sagrada imagem das seis asas significa o impulso maravilhoso com
que as hierarquias primeiras, médias e inferiores se elevam constantemente até
Deus. Enquanto via os inumeráveis pés, a multidão dos rostos, as asas com que
ocultava acima os rostos e abaixo os pés, as asas do meio em um bater
constante, o santo profeta foi elevado à compreensão daquelas coisas. Foram-lhe
mostradas as múltiplas facetas das inteligências mais
excelsas, o multiforme poder de sua visão. Foi testemunha da reverência sagrada
e da maneira extraordinária com que aqueles espíritos procedem na investigação
dos mais altos e profundos mistérios, sem presunção, sem arrogância nem
fantasias. Testemunha também do movimento harmonioso e elevado com que atuam
incessantemente a imitação de Deus.
Ademais, aprendeu o
santo profeta aquele cântico de louvor à Deidade, pois o anjo desta visão lhe
comunicou, dentro do possível, toda a ciência sagrada que tinha. Ensinou-lhe
também que toda pessoa se purifica na medida em que participa da claridade
transparente da Deidade. Por razões que não são deste mundo, a própria Deidade
infunde esta misteriosa e supraessencial claridade
nos sagrados seres-inteligências. Recebem-na melhor, com mais humildade, como é
óbvio, as hierarquias mais próximas à Deidade, pois sua capacidade é maior.
Quanto ao poder da segunda e terceira hierarquia e de nossa mesma inteligência,
Deus dá mais ou menos luz, dEle
proveniente, para alcançar a incognoscível união com seu próprio mistério,
segundo o grau de configuração com a Deidade. Ilumina as sagradas hierarquias
por meio das primeiras. E, para dizê-lo brevemente, a Deidade se dá a conhecer
por meio dos primeiros poderes.
De modo semelhante, o
anjo que efetuou a purificação do profeta refere seu saber e poder de purificar
primeiro a Deus, como Causa, e em seguida aos serafins como a seus ministros
imediatos.
Como se o anjo, ao
informar a quem purificava, lhe dissesse prudentemente:
"a purificação que se verifica em ti por meu
intermédio tem como princípio, essência e causa ao Ser Transcendente que dá a
existência aos seres da primeira hierarquia, os conserva e os protege junto a
Ele, imutáveis e perfeitos, e os induz a tomar parte nas atuações de sua
Providência".
Isto é o que eu aprendi
de meu mestre a respeito da missão do serafim. Depois de Deus são os hierarcas
e chefes supremos dos seres da primeira hierarquia os que me instruíram neste
ofício de purificar e que, por meu intermédio, te purificam a ti. Por meio
deles, Aquele que é Causa e autor de toda purificação deu a conhecer a oculta
atuação de sua Providência, abaixando-se até o nível em que a possamos
compreender.
Isto eu aprendi de meu
mestre e deste mesmo modo o transmito a ti. Cabe agora ao teu entendimento e
sentido crítico optar por uma ou outra das soluções propostas. Escolhe o que te
pareça mais verossímil, razoável e conforme à verdade.
A não ser que, naturalmente, tu mesmo apresentes outra solução mais objetiva e
próxima à verdade ou a aprendas de algum outro. Isto é, tomando como fundamento
a palavra de Deus (Sl. 68, 11)
e a interpretação que dela dão os anjos. Então poderias revelar-me a mim, que
amo aos anjos, uma contemplação mais clara e mais pura que eu quereria para
mim.
CAPÍTULO XIV
1
.
Creio que devemos refletir sobre a tradição bíblica de que o número dos anjos é
mil vezes mil e dez mil vezes dez mil (Dn. 7, 10; Ap. 5, 11). São números que, elevados ao quadrado, e
multiplicados, nos indicam que é infinito o número das hierarquias celestes.
Tão numerosos, de fato, são os exércitos bem aventurados dos
seres-inteligências, que ultrapassam o deficiente e limitado campo de nossos
números físicos. Só podem conhecê-los e definí-los
aquelas inteligências e a ciência transcendental, celeste, que generosamente
lhes concedeu Deus, o onisciente, o Criador da sabedoria. Esta supraessencial Deidade verdadeira é a fonte de todas as
coisas, a causa da existência, o poder que a tudo mantém e a causa final que
tudo abarca.
CAPÍTULO
XV
1. Agora, se te parece,
o olhar de nossa inteligência vai descansar do esforço que faz para chegar às
alturas solitárias da contemplação própria dos anjos. Baixemos às planícies da
divisão e da multiplicidade, à diversidade de formas que
tomaram os anjos em suas aparições. Em seguida voltaremos sobre nossos passos,
partindo destas imagens, e nos ergueremos às inteligências celestes.
Porém, antes de tudo,
tem em muita conta que as explicações dos símbolos sagrados indicam que as
mesmas ordens de seres celestes algumas vezes dirigem nas coisas sagradas e
outras vezes são dirigidas; que as de ínfimo grau dirigem, e as de primeiro são
dirigidas; que, como já disse, todos eles têm poderes
superiores, intermediários e inferiores.
Esta maneira de
explicar as coisas não implica em nenhum absurdo. Seria total absurdo e estúpida confusão que tal ou qual hierarquia em
relação aos mistérios sagrados sejam dirigidas exclusivamente por suas
superiores e que ao mesmo tempo estas últimas sejam dirigidas pelas inferiores.
Ou que a superior instrui à inferior e esta, por sua vez, à superior sob o
mesmo aspecto. Ao afirmar que os mesmos seres dirigem e são dirigidos não quero
dizer que o diretor seja dirigido por aquele mesmo a quem dirigiu. O que
significa é que cada ordem é dirigida por aquela que a precede e que esta
dirige às que lhe seguem como inferiores. Portanto, não há nenhum inconveniente
em dizer que as representações sagradas das Escrituras podem às vezes ser
atribuídas com propriedade e correção aos poderes superiores, outras aos
intermedi rios e também aos inferiores.
O poder de elevar-se em
constante movimento de retorno, o poder de voltar-se incessantemente sobre si
mesmos enquanto conservam os próprios poderes, a capacidade de participar no
plano providencial de comunicar-se sucessivamente com as ordens inferiores é,
sem dúvida, característico dos seres celestes, próprio de alguns, conforme
disse com freqüência, de modo inteiramente
transcendente, de outros de modo parcial e inferior.
2. Agora vamos abordar
o tema proposto. Nossa explicação começa com a questão de por que a Escritura
parece preferir a alegoria do fogo a todas as demais. Observarás que não apenas
representa rodas inflamadas (Dn. 7, 9), como também
animais em chamas (Ez.1, 13; II Re. 2, 11) e homens em
certo modo incandescentes (Mt. 28, 3; Lc. 24, 4; Ez. 1, 4-7; Dn. 10, 1). Põe montes de tições acesos em torno aos seres
celestes (Ez. 1, 13; 10, 2),
e rios de fogo com ruído imponente (Dn. 7, 10). Tronos
de fogo (Dn. 7, 9). Evoca a
etimologia da palavra "serafim" descrevendo-os como incandescentes,
atribuindo-lhes propriedades do fogo (Is. 6, 6). Geralmente a Escritura prefere a imagem do fogo ao
falar das hierarquias, sejam de ordem superior ou inferior. Na realidade, em
meu parecer, o símbolo do fogo é a melhor maneira de expressar a semelhança que
têm com Deus os seres-inteligências do Céu.
Praticamente é esta a
razão pela qual os santos teólogos representam com a imagem do fogo ao Ser supraessencial, que não admite figura (Ex. 3, 2-6; 14, 24; 19, 18; Is. 4, 5; 29, 6;
30, 30; Dt. 4, 24; Sl. 89,
47; Ez. 1, 4; I Re. 19, 11). Como imagem de coisas
sensíveis, o fogo representa, para assim dizê-lo, muitas propriedades da
Deidade. O fogo, na realidade, está sensivelmente presente em todas as coisas.
A tudo penetra sem manchar-se e continua ao mesmo tempo separado. A tudo
ilumina e permanece, por sua vez, desconhecido, pois não o percebemos mais do
que pela matéria onde opera. É incontenível. Ninguém
o pode contemplar fixamente. A tudo domina e transforma em si mesmo ao que
alcança. Entrega-se aos que se lhe aproximam. Renova com o seu calor
vivificante. Ilumina com seu esplendor e permanece puro, sem misturar-se.
Produz mudanças, mas em nada se altera. Sobe ao mais alto e penetra ao mais
profundo. Arrasta-se pelos solos e caminha pelo mais elevado. Sempre movendo-se a si mesmo e movendo aos demais. Estende-se por
todas as direções sem que possa ser encerrado em nenhuma parte. Não necessita
de ninguém. Cresce escondido e manifesta sua grandeza onde quer que seja
recebido. Dinâmico, poderoso, invisível, presente em todo ser. Se não lhe
fazemos caso, parece que não existe. Porém quando há atrito, como se lhe
fizéssemos uma súplica, sai em busca de algo. Surge repentinamente,
naturalmente e por si só; imediatamente se levanta incontenível
e sem prejuízo próprio, alegremente se comunica com suas vizinhanças.
Poderiam descobrir-se
muitas outras propriedades do fogo que, como imagens tomadas do sensível, podem
aplicar-se às atividades da Deidade. Os que entendem da sabedoria divina
manifestam seus conhecimentos representando pelo fogo as coisas celestiais.
Deste modo manifestam a proximidade com que estas imagens se parecem com o
divino as quais, de certo modo, imitam a Deus.
3. Para representar
seres celestes utilizam também figuras antropomórficas (Dn.
10, 1; Ez. 1, 5-10; Mc. 16,
5; Lc. 24, 4; Ap. 4, 7; 10, 1), pois o homem, apesar
de tudo, é inteligente e capaz de olhar para o alto. Firme e direito, é por
natureza chefe e governante. Comparado com os animais irracionais, é o menor na
escala da força e das sensações; porém ele domina a todos com o poder superior
de sua inteligência, pela sabedoria de seu saber racional e a natural liberdade
e independência de seu espírito.
Penso também que cada
uma das partes do corpo humano nos subministra imagens perfeitamente aplicáveis
aos poderes celestes. Poderia dizer-se que as faculdades visuais (Ez. 1, 18; 10, 12; Dn. 10, 6; Ap. 4, 6-8) sugerem o poder de olhar diretamente
as luzes divinas e ao mesmo tempo a capacidade de receber as iluminações de
Deus com suavidade, claridade, sem resistência, docilmente, pura e abertamente,
sem paixão.
O poder de distinguir
odores (Tb. 6, 17; 8, 13) indica a capacidade de
acolher plenamente as fragrâncias que o entendimento não alcança. Discernimento
também para entender o que está corrompido e rejeitá-lo absolutamente.
A faculdade do ouvido (Sl. 103, 20) significa a
capacidade de participar de algum modo na inspiração divina.
O gosto (Gen. 18, 5-8; 19, 1-3; Is. 25,6)
tem relação com a satisfação do entendimento quando bebe até a saciedade nos
rios da Deidade.
O tato (Gen. 32, 35; Jz. 6, 21) significa
discernir entre o proveitoso e o nocivo.
Pálpebras e
sobrancelhas simbolizam o cuidado em guardar o que a mente conheceu de Deus.
Adolescência e
juventude (Mc. 16,5) indicam a força vital, sempre vigorosa.
Os dentes referem-se à
habilidade com que dividem o alimento que recebem, pois, de fato, todo
ser-inteligência, tendo recebido de outro que é superior o dom da inteligência unitiva, passa a dividí-lo e
distribuí-lo para que o inferior se eleve o mais possível.
Os ombros, braços (Dn. 10, 6; II Sam. 24, 16) e mãos
(Jz. 6, 21; Sl. 91, 12; Ez. 1, 8; 8, 3; 10, 8; 10, 21; Dn.
10, 10; 12, 7; Ap. 10, 5) representam a propriedade de atuar e aperfeiçoar.
O coração (Jer. 7, 24; Sl.
41, 4) é símbolo de uma vida deiforme, que compartilha sua força vital com
aqueles por quem se interessa.
O peito significa a
fortaleza inexpugnável onde se localiza o coração, fonte de vida.
As costas (Ez. 1, 18; 10, 12) representam o
conjunto de poderes que contém energias vitais.
Os pés (Is. 6, 2; Ez.
1, 7; Dn. 10, 5; Ap. 10, 1) significam o movimento
acelerado da corrida perpétua que os conduzem às realidades divinas. Por isso
as Escrituras puseram asas nos pés (Is. 6, 2; Ez. 1, 6; 1, 22; 10, 5-16)
dos seres-inteligências, pois as asas dão a entender rapidez para elevar-se no
caminho do Céu, constante impulso que ergue acima dos apetites terrenos. Asas
rápidas simbolizam a libertação das atrações mundanas, o puro e desimpedido
subir aos cumes.
4.Aquela
simples, porém "multiforme sabedoria" (Ef.
3, 10) veste os nús e fala de como estão vestidos.
Devo explicar agora, o quanto me seja possível, o vestuário e os instrumentos
sagrados atribuídos aos seres-inteligências no Céu. Penso que os vestidos
luminosos e incandescentes (Ap. 9, 17; 15, 6; Lc. 24, 4; Ez. 1, 27) simbolizam
a deiformidade. Estão em conformidade com o
simbolismo do fogo. O poder de iluminar é conseqüência
da herança do Céu, que é morada de luz. Ilustra a mente e na mente todas as
coisas se ilustram.
As vestimentas
sacerdotais (Ez. 9, 2; 10,
6-8; Ap. 1, 13; 4, 4; Dn. 10, 5-6) significam a
disponibilidade para encaminhar-se espiritualmente até a divina e misteriosa
visão, consagrando-lhe toda a vida. Os cintos (Ez. 9, 2; 10, 2-6; Ap. 15, 6; Dn. 10,
5) indicam o domínio que os seres-inteligências possuem de suas forças
reprodutoras. Significam também o poder destes seres para recolherem-se, sua
concentração unificante, o dobrar-se harmonioso e incansável em torno à própria
identidade.
5. Os cetros (Jz. 6, 21; Is.
10, 5) simbolizam o poder e a soberania com que conduzem à perfeição todas as
coisas.
As lanças (II Mc. 5, 1-3; Jer. 6, 22-23; Is. 49, 2) e os machados (Ez. 9,
2; Gen. 3, 24; Num. 22, 23; Jos. 5, 31; I Cron. 21,
15; Ap. 19, 21) representam a habilidade de separar as coisas dessemelhantes, a
aguda claridade e eficácia de seus poderes de discernimento.
Os instrumentos
geométricos e de arquitetura indicam o poder de colocar cimentos, edificar,
acabar e, de modo geral, tudo o que se refere à elevação espiritual e conversão
providencial de seus subordinados (Ez. 40, 3; Am. 7, 7; Zac. 2, 1; Ap. 21,
15).
Às vezes os
instrumentos (Ap. 8, 6; 14, 14-17; 20, 1) empregados
para representar aos santos anjos simbolizam os julgamentos de Deus em relação
a nós. Uns representam a disciplina que corrige ou o reto castigo, outros a
libertação do perigo, o da disciplina ou repercussão da felicidade anterior, a
concessão de novos dons, grandes ou pequenos, dons sensíveis ou intelectuais.
Em suma, a uma inteligência perspicaz não seria muito difícil encontrar a
correlação entre os sinais visíveis e as realidades invisíveis.
6. São também chamados
de "ventos" (Sl. 104; Heb.
1, 7; Apoc. 6, 1), para
indicar a quase instantânea rapidez com que operam em todas as partes, sem ir
nem vir de cima para baixo ou de baixo para cima, quando levantam a seus
inferiores até o mais alto cume e quando induzem aos superiores a que desçam
para comunicarem-se com os inferiores e exercer sua providência com estes
últimos.
Poderíamos acrescentar
que a palavra "vento" significa espírito do ar e mostra como os
seres-inteligências vivem em conformidade com Deus (Jo.
3, 8). Vento é imagem e
símbolo da atividade divina que move naturalmente e dá vida, empurrando para
diante reta e incontenivelmente. E isto por razões
desconhecidas e invisíveis; isto é, fica oculto para
nós o princípio e o fim de seu movimento.
"Não
sabes",
diz
a Escritura,
"de
onde vem, nem para onde vai".
Disto tratei com mais
pormenores na Teologia Simbólica, ao explicar os quatro elementos.
A Escritura os
representa também em forma de nuvem (Ex. 33, 9; Num. 12, 5; Sl.
18, 12; 109, 7; Ez. 1, 4;
10, 3; Ap.10, 3), significando com isto que os santos seres-inteligências
estão, de modo transcendente, cheios de luz, e como intermediários a transmitiram
generosamente aos seguintes na medida em que estes a possam receber. Possuem o
poder de dar a vida, de fazer crescer e levar à perfeição porque derramam
chuvas de entendimento e chamam ao seio que os recebe para que dê à luz
criaturas novas.
7. A Sagrada Escritura,
ademais, atribui aos seres celestes forma de bronze (Ez.
8, 2; 40, 3; Dn.10, 5-8; Ap. 1, 5), de âmbar (Ap. 4,
3; 21, 19-21; Ez. 1, 26; Ap. 21, 18-20) e de pedras
multicores. Porque o âmbar, que contém ouro e prata (Ez.
1, 7; 40, 3; Dn. 10, 6),
simboliza por um lado o incorruptível, inesgotável, indefectível e puríssimo do
ouro; por outro, a claridade brilhante e celeste da prata. O bronze, pelas
razões indicadas, representa o fogo e o ouro. Quanto às pedras multicores,
deve-se entender o seu simbolismo como se segue: o branco é a luz; o vermelho,
o fogo; o amarelo, o ouro; o verde, a vitalidade juvenil.
Encontrarás que cada
espécie leva consigo um significado elevador por cada
imagem representativa. Porém, como creio ter tratado suficientemente destes
temas, passemos agora à santa explicação das figuras animais que a Escritura
atribui aos seres-inteligências do Céu.
8. A figura do leão (Ez. 1, 10; 10, 14; Ap. 4, 7; 10,
3; Sl. 77, 19; Dn. 7, 4; Is. 31, 4; Ez. 19, 2-7; Sl. 57, 5) indica o domínio poderoso e indomável. Os seres
celestes se aproximam o mais que podem ao mistério da inefável Deidade cobrindo
as pegadas da própria inteligência. Humilde e misteriosamente, colocam um véu
sobre o caminho que os leva à divina iluminação.
O símbolo do boi (Ez. 1, 10) indica a força e o
poder, a capacidade de abrir profundos sulcos de conhecimento onde caiam as
fecundas chuvas dos céus. Os cornos são sinal do poder que guarda e é
invencível.
A águia (Ex. 19, 4; Dt. 32, 11; Ez.
1, 10; Dn. 7, 4; Ap. 4, 7) significa a realeza, o
rápido lançar-se ao mais alto, o vôo veloz, a
agilidade, a disposição, rapidez e agudeza para descobrir o alimento. É símbolo
da contemplação que livremente, de modo direto e sem rodeios, dirige o olhar
vigoroso em direção aos abundantes raios que prodigaliza o Sol divino.
Os cavalos (II Re. 2, 11; 6, 17; Zac. 1, 8-10; 6,
1-5; Ap. 6, 1-8; 19, 14) significam obediência e docilidade. Sua brancura é
brilho comparável à luz de Deus; sua cor marrom significa a profundidade dos
mistérios; o vermelho é o poder e a eficácia do fogo; os de pelo branco e preto
designam a aliança de extremos opostos e o poder passar
de um a outro, a adaptação do superior ao inferior e do inferior ao superior,
que procede da conversação de uns e da providência de outros.
Se não tivesse que
conservar as devidas proporções deste tratado, poderia deter-me em considerar
cada uma das partes e dos pormenores físicos dos animais que mencionei. Poderia
fazer razoavelmente a aplicação aos poderes celestes, sob o aspecto das
semelhanças e dessemelhanças. Assim, a ira dos animais representaria a
fortaleza espiritual, da qual a ira é o último vestígio. A concupiscência
animal corresponderia ao desejo que sentem os anjos pela presença de Deus. Em
resumo, de todos os sentidos e múltiplas partes dos animais irracionais pode-se
fazer referência às inteligências imateriais e aos poderes unificantes dos
seres celestes.
Estas coisas bastam
para os entendidos. Ademais, com a explicação de uma destas imagens
comparativas esclarecem-se, por semelhança, os símbolos do mesmo gênero.
9. Vou examinar agora
por que se aplicam aos seres celestes os nomes de rios, rodas e carros (Dn. 7, 10; Ez.
47, 1; Ap. 22, 1). Rios de fogo significam os canais divinos que não cessam de
fluir copiosamente sobre os anjos alimentando sua fecundidade vital. Os carros
(II Re. 2, 11; 6, 17; Sl.
104, 3; Zac. 6, 1-8) significam a aliança entre os
que constituem a mesma ordem. Quanto às rodas com asas (Ez.
1, 15-21; 10, 1-13; Dan. 7, 9), que avançam sem voltar
atrás nem desviar-se, significam o poder de caminhar diretamente ao longo do
caminho, sem desviar-se, graças ao que a roda de sua inteligência é guiada de
modo nada comum a este mundo. Porém poderíamos fazer outro comentário sobre a
iconografia das rodas da mente dela tirando um ensinamento espiritual. Porque,
conforme disse o profeta, chamam-se "Gelgel"
(Ez. 10, 13 in LXX), que em
hebraico quer dizer revolução e revelação. Estas rodas flamígeras,
à semelhança de Deus, "giram" em torno de si mesmas em seu movimento
incessante em torno do Bem. "Revelam", na medida em que declaram
mistérios ocultos, elevam as mentes desde os graus inferiores e transmitem a
estas as luzes mais altas.
Resta-me, finalmente,
explicar o que a Escritura entende por alegria das ordens celestes. Não é
possível que estas hierarquias experimentem os prazeres das paixões. Por isso,
o que aqui se diz refere-se ao gozo divino que experimentam por achar o que se
havia perdido (Lc. 15, 7-10;
Jo. 16, 22-24). Experimentam uma dita serena e
verdadeiramente divina, alegria pura, sem inveja, pela providência e salvação
dos convertidos a Deus. Felicidade inefável que se observa às vezes quando
alguns santos recebem a visita iluminadora de Deus (Jo.
16, 22; 17, 13).
Isto é o que me propus
a dizer sobre as representações sagradas. Quem sabe tenha sido muito breve em
minhas explicações. No entanto, creio que isto terá evitado que nos estanquemos
erroneamente em meras representações simbólicas. Talvez se nos repreenda não
haver mencionado todos os poderes, todos os atos e alegorias com que as
Escrituras se referem aos anjos. É certo. Porém ter omitido a algumas coisas
prova o fato de que encontro-me perdido quando deve-se
entender as realidades transcendentes. Eu realmente necessitaria da luz de um
guia. Omissões de temas análogos aos que tratei podem explicar-se, porque eu
tinha esta dupla preocupação: não fazer um tratado demasiadamente grande e
tributar um respeitoso silêncio aos mistérios onde não
chega o meu conhecimento.
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