Tradução: Carlos Martins Nabeto
Capítulo I
O mundo pariu muitos monstros. Em Isaías lemos sobre centauros, corujas e pelicanos. Jó, em linguagem mística, descreve Leviatã e Behemoth. Cérbero e os pássaros de Estínfalo, o porco de Erimantéia e o leão de Neméia, a Chimera e a Hidra de muitas cabeças são citadas em fábulas poéticas. Virgílio descreve Caco. A Espanha criou Gerion, com seus três corpos. Somente a Gália não teve monstros e sempre contou com homens ricos em coragem e grande eloqüência... Isto até Vigilâncio - ou, mais propriamente, "Dormilâncio" - que surgiu, animado por um espírito imundo, para lutar contra o Espírito de Cristo e negar aquela reverência religiosa que devemos prestar aos túmulos dos mártires. As vigílias - afirma ele - devem ser condenadas. O "Aleluia" nunca deve ser cantado senão na Páscoa. A continência é uma heresia. A castidade, uma cama preparada para a concupiscência. E assim como dizem que Eufórbio renasceu na pessoa de Pitágoras, então temos que neste (=Vigilâncio) ressuscitou a mente corrompida de Joviniano. Nele, não menos que em seu predecessor, encontramos as ciladas do demônio. A Palavra pode ser justamente aplicada a ele: "Raça de malfeitores, preparai vossos filhos para o massacre por causa dos pecados do vosso pai". Joviniano, condenado pela autoridade da Igreja de Roma, entre a carne de faisão e a de porco, exalou, ou melhor, vomitou o seu espírito. E agora, este sustentador das tavernas do Calagurre, que conforme o nome de sua vila nativa é Quintiliano, estúpido ao invés de eloqüente, quer combinar água com vinho. Segundo a armadilha que ele há muito já conhece, tenta agora misturar seu veneno com a fé católica: ele agride a virgindade e odeia a castidade; se regozija com o mundano e prega contra o jejum dos santos; serve o filósofo em sua bandeja e se alivia com as doces melodias da salmodia enquanto lambe os lábios após comer seus bolos de queijo. Alías, não poderia ele dignar-se a ouvir as canções de Davi, Jeduth, Asaf e os filhos de Coré a não ser na mesa do banquete. Isto eu tenho dito com mais pesar que alegria, pois não posso me conter, tornando-me surdo ao ouvir as coisas erradas que ele atira contra os apostólos e mártires.
Capítulo II
Vergonhoso de se mencionar é que alguns bispos, segundo dizem, se associaram a ele em sua iniqüidade - se é que esses homens podem mesmo ser chamados de bispos - e não ordenam diáconos a não ser que tenham eles sido previamente casados. Eles não honram o celibato exigindo mais castidade, ou melhor, eles mostram claramente que a medida da santidade de vida que querem se dá indulgenciando as piores dúvidas do homem e, exceto que os candidatos à ordenação apareçam perante eles com esposas grávidas e bebês chorando no colo de suas mães, não administrarão a estes a ordenação de Cristo. O que estão fazendo as igrejas do Oriente? E as que pertencem às igrejas egípcias ou à Sé Apostólica: aceitam para o ministério apenas homens virgens, ou que praticam a continência ou, se casados, abandonaram seus direitos conjugais? Eis o ensinamento de Dormilâncio, que lança as rédeas sobre o pescoço da luxúria e por seu incentivo duplica o calor natural da carne, que na juventude atinge o ponto máximo e que se sacia pelo intercurso [sexual] com mulheres. Daí, nada nos separa dos porcos, nada aqui nos difere da criação bruta, ou dos cavalos, a respeito do que está escrito: "Eles se dirigiram às mulheres como cavalos selvagens; todos relincharam após [conhecerem] a esposa de seu vizinho". Isto é o que foi dito pelo Espírito Santo através da boca de Davi: "Não sejais como o cavalo e a mula que não compreendem". E, novamente, acerca de Dormilâncio e seus amigos: "Amarrem a maxilar daqueles que se aproximam de vocês com freios e rédeas".
Capítulo III
Mas agora nos chegou o momento de abordar as suas próprias palavras e responder-lhe em detalhes. Isto porque, possivelmente, em sua malícia, ele pode novamente optar em me deturpar e dizer que eu tenho o trunfo de apreciar um caso fazendo uso dos meus poderes retóricos e declamatórios para combatê-lo, tal como na carta que escreví para a Gália, expondo para uma mãe e sua filha que estavam na dúvida. Este pequeno tratado que agora redijo, é aguardado pelos respeitáveis presbíteros Ripário e Desidério, que informaram que suas paróquias e vizinhanças estão sendo profanadas e me enviaram, através do nosso irmão Sisínio, os livros que ele (Dormilâncio) vomitou como um bêbado na ressaca. Eles também afirmam que algumas pessoas ali, a partir de suas inclinações para os vícios, aderem às suas blasfêmias. Ele é um bárbaro tanto em sua fala quanto em seu conhecimento. Seu estilo é rude. Ele não tem condição nem de defender a verdade. Mas por amor aos leigos e pobres mulheres, carregados de pecados, sempre aprendendo e nunca atingindo o [pleno] conhecimento da verdade, vou disperdiçar uma noite de trabalho para abordar as suas fúteis melancolias, caso contrário poderia parecer que eu estaria tratando com desprezo as cartas daquelas respeitáveis pessoas que confiaram a mim tal tarefa a ser empreendida.
Capítulo IV
Certamente ele representa bem a sua raça. Originado de um bando de marginais e indivíduos reunidos dos quatro cantos [do mundo] - isto porque Pompeu, após conquistar a Espanha, quando se apressava para retornar [a Roma] em seu triunfo, desceu pelos Pirineus e reuniu [os referidos indivíduos] em um só lugar, de onde veio o nome da cidade: Convenae [=convocação] - ele (Vigilâncio) foi encarregado por suas práticas criminosas a atacar a Igreja de Deus. Como seus ancestrais, os vetões, os harrabaceus e o celtiberianos, ele se lança sobre as igrejas da Gália, não carregando o estandarte da cruz mas, ao contrário, a insígnia do diabo. Pompeu fez o mesmo no Oriente. Após subjugar os piratas e bandidos cilicianos e isaurianos, ele fundou uma cidade, que possui o seu próprio nome, entre a Cilícia e a Isáuria. Essa cidade, porém, observa até hoje as ordens dos seus ancestrais e nenhum Dormilâncio surgiu ali. Mas a Gália possui um inimigo nativo e vê sentado na Igreja um homem que perdeu o juízo e que deveria ser colocado em uma camisa-de-força, como recomenda Hipócrates. Entre outras blasfêmias, escuta-se ele dizer: "Que necessidade há para ti de prestar tal honra, para não dizer adoração, a uma coisa, qualquer que seja ela, que você carrega e cultua?". E novamente, no mesmo livro: "Por que você beija e adora um pouco de poeira envolto em um pedaço de pano?". E mais uma vez, no mesmo livro: "Sob o manto da religião vemos que tudo de uma cerimônia pagã foi introduzida nas igrejas: enquanto o sol ainda brilha, um monte de velas são acesas e em todo lugar um pouco de pó miserável, envolto em panos caros, é beijado e adorado. É esta a grande honra que os homens prestam aos bem-aventurados mártires que - conforme pensam - deve ser feita de maneira gloriosa, através de velas insignificantes, enquanto que o Cordeiro, que se encontra no centro do trono, com todo o brilho de sua majestade, lhes dá a luz?".
Capítulo V
Louco! Quem neste mundo já adorou os mártires? Quem já pensou que o homem fosse Deus? Acaso Paulo e Barnabé - quando o povo da Licônia pensou que se tratavam de Júpiter e Mercúrio e por isso precisavam oferecer-lhes sacrifícios - não rasgaram suas vestes e se declararam homens (Atos 14,11)? Não que eles não fossem melhores que Júpiter e Mercúrio, mortos muito tempo antes, mas porque, sob as falsas idéias dos gentios, a honra devida a Deus estava sendo prestada a eles. E lemos o mesmo a respeito de Pedro que, quando Cornélio quis adorá-lo, pegou-o pela mão e disse-lhe: "Levanta-te, pois sou apenas um homem" (Atos 10,26) e você (Vigilâncio) tem a audácia de falar de "algo misterioso ou outra coisa qualquer que você carrega em um pequeno embrulho e adora"? Eu gostaria de saber o que é que você chama de "algo misterioso ou outra coisa qualquer". Diga-nos mais claramente - pois não pode haver moderação na sua blasfêmia - o que você quer dizer com a expressão: "um pouco de pó miserável, envolto em panos caros". Isso nada mais é do que as relíquias dos mártires, que o deixam irritado ao vê-las cobertas por tecido nobre e não por farrapos ou lenços de cabeça, ou lançadas na esterqueira. Com efeito, apenas Vigilâncio, em seu sono de bêbado, acha que podem ser adoradas. Seríamos nós, portanto, culpados de sacrilégio quando entramos nas basílicas dos Apóstolos? Seria o imperador Constâncio I culpado de sacrilégio quando transferiu as sagradas relíquias de André, Lucas e Timóteo para Constantinopla? Na presença destas [relíquias] os demônios se pertubam e os diabos que habitam em Vigilâncio confessam que sentem a influência dos santos. E nos presentes dias, seria o imperador Arcádio culpado de sacrilégio por, depois de tanto tempo, ter transportado os ossos do bem-aventurado [profeta] Samuel da Judéia para a Trácia? Deveríamos considerar todos os bispos não apenas sacrílegos mas tolos porque eles carregam "coisas mais inúteis" - poeiras e cinzas - envoltas em sedas douradas? Seriam tolos os fiéis de todas as igrejas porque foram se encontrar com as sagradas relíquias e deram boas vindas a elas com tanta alegria como se estivessem recebendo um profeta vivo em seu meio, de forma que um grande número de pessoas as seguiram da Palestina até a Calcedônia em uma só voz recitando as orações de Cristo? Seriam loucos se adorassem a Samuel e não a Cristo, já que Samuel era um mero levita e profeta. Você (Vigilâncio) demonstra desconfiança porque pensa apenas em corpos sem vidas e em razão disso blasfema. Leia o Evangelho (Mateus 22,32): "O Deus de Abraão, o Deus de Isaac, o Deus de Jacó: Ele não é Deus dos mortos, mas dos vivos". Ora, se então eles estão vivos, não são "mantidos em um confinamento honorável", para usarmos aqui as suas palavras.
Capítulo VI
Você diz que as almas dos Apóstolos e mártires residem no seio de Abraão, ou num lugar de refrigério, ou sob o altar de Deus e que eles não podem viver em seus próprios túmulos e estarem presentes onde quiserem. Eles são, ao que parece, da classe senatorial e não estão sujeitos aos piores tipos de cárcere, nem à sociedade de assassinos, mas são mantidos em separado, sob custória honorífica e liberal nas abençoadas ilhas dos Campos Elíseos. Irá você agora estabelecer a lei para Deus? Irá você agora acorrentar os Apóstolos? Então ficarão eles confinados até o Dia do Julgamento e não estarão com o seu Senhor, embora esteja escrito a respeito deles: "Eles seguem o Cordeiro para qualquer lugar que Ele for" (Apocalipse 14,4). Ora, se o Cordeiro está presente em todo lugar, o mesmo devemos acreditar acerca destes que estão com o Cordeiro. E embora o diabo e os demônios vagueiem por todo o mundo e com tamanha velocidade eles mesmos se movem por todo lugar, estariam os mártires, após derramarem o seu sangue, sendo mantidos confinados em algum lugar de onde não poderiam escapar? Você afirma, em seu panfleto, que enquanto estamos vivos podemos orar uns pelos outros, mas que, quando morremos, a oração de uma pessoa não poderá favorecer outra qualquer; e isto em razão dos mártires, embora eles possam pedir pela vingança de seu sangue, o que, porém, nunca lhes será atendido (Apocalipse 6,10). Se os Apóstolos e mártires, enquanto estão no corpo, podem orar pelos outros, ainda quando se encontram inquietos por si mesmos, quanto mais deverão fazer após terem recebido suas coroas, vencido e triunfado? Um simples homem, Moisés, obteve o perdão de Deus para seiscentos mil homens armados; e Estêvão, seguidor de seu Senhor e o primeiro mártir cristão, implorou o perdão para seus perseguidores; e quando eles entraram na Vida com Cristo, acabaram tendo menos poder do que antes? O Apóstolo Paulo diz que 272 almas foram entregues a ele no navio (Atos 27,37); e após sua dissolução (=morte), quando ele começou a estar com Cristo, deveria ele calar a sua boca e ser incapaz de dizer uma só palavra em favor daqueles que em todo o mundo creram no seu Evangelho? Para Vigilâncio, seria um cachorro vivo melhor que Paulo, o leão morto? Estaria eu certo em seguir o Eclesiastes se admitisse que Paulo está morto em espírito... Mas a verdade é que os santos não são chamados de "mortos"; acerca deles dizemos que estão dormindo. Por isso, diz-se de Lázaro - que estava para ser ressuscitado - que tinha dormido (João 11,11). E o Apóstolo proíbe os tessalonicenses de se preocuparem com aqueles que dormiram. Você (Vigilâncio), que está dormindo acordado e dorme quando escreve, me aponta um livro apócrifo que, sob o nome de Esdras, é lido por você e por aqueles loucos que o escutam, e nesse livro está escrito que após a morte ninguém se atreve a orar pelos outros. Eu nunca li esse livro, mas qual a necessidade de lê-lo se a Igreja não o recebeu? Provavelmente a sua intenção real é de me confrontar com Bálsamo, Barbélio e o Tesouro dos maniqueus, além daquele que traz o ridículo nome de Leusiboras. Talvez porque você vive aos pés dos [montes] Pirineus, no limite da Ibéria, acaba seguindo as "incríveis maravilhas" do antigo herege Basílides e seu assim chamado "conhecimento" - o qual é simples ignorância - e que foi condenado pela autoridade de todo o mundo. Eu afirmo isto porque em seus breves tratados você cita Salomão como se ele concordasse contigo, porém Salomão jamais escreveu tais palavras; então, da mesma forma que você possui um segundo Esdras, tem também um segundo Salomão. E se você gostar, pode ler ainda as revelações imaginárias de todos os patriarcas e profetas; e quando você tiver aprendido todas elas, poderá cantá-las entre as mulheres nas tecelagens, ou ordenar que sejam lidas nas suas tavernas, pois é mais fácil assim que essas canções melancólicas estimulem o povo ignorante a encher novamente as canecas.
Capítulo VII
Contudo, quanto a questão das velas, ao contrário do que você (Vigilâncio) em vão nos acusa, nós não as acendemos durante o dia, mas para conforto podemos alegrar a escuridão da noite, enquanto aguardamos o amanhecer, para que não sejamos cegos como você e cochilemos nas trevas. E se algumas pessoas, leigos simples e rudes, ou quase sempre mulheres religiosas - de quem podemos realmente dizer: "Eu admito que eles tem zêlo por Deus, ainda que não seja conforme a razão" (Romanos 10,2) -, adotam tal prática em honra dos mártires, que mal isto causa a você? Já houve uma vez que os próprios Apóstolos suplicaram que o ungüento não fosse desperdiçado e acabaram sendo repreendidos pela voz do Senhor. Cristo não precisava do ungüento assim como os mártires não precisam da luz das velas. Ainda assim, aquela mulher que derramou o ungüento em honra de Cristo teve a devoção do seu coração aceita [pelo Senhor]. Todos aqueles que acendem essas velas têm sua recompensa de acordo com a sua fé, como disse o Apóstolo: "Que cada um abunde em sua própria intenção". Você chama estes homens de idólatras? Eu não nego que todos nós que cremos em Cristo deixamos de lado o erro da idolatria. Nós não nascemos cristãos, mas nos tornamos cristãos ao renascermos [pelo Batismo]. E porque [um dia] já adoramos ídolos se conclui agora que nós não podemos adorar a Deus, pois parece que prestamos honra a Ele e aos ídolos? Um caso é prestar [honra] aos idólos e, neste caso, o culto é detestável; outro caso é a veneração dos mártires, sendo seu culto permitido. Em todas as igrejas do Oriente, mesmo quando alguma delas não possui relíquias dos mártires, o Evangelho é lido e os castiçais são acesos, ainda que a aurora esteja avermelhando o céu, não para dispersar as trevas, mas para evidenciar o nosso júbilo. E, conforme o Evangelho, as virgens carregam sempre acesas as suas lâmpadas (Mateus 25,1). E dos Apóstolos diz-se que tinham de cingiam seus lombos e acender suas lâmpadas (Lucas 12,35). E de João Batista lemos que "Ele possui a lâmpada que arde e ilumina" (João 5,35). Assim, através da figura da luz corpórea, é representada aquela luz que lemos no Saltério: "Tua Palavra é uma lâmpada para os meus pés, ó Senhor, e uma luz para os meus caminhos".
Capítulo VIII
Estaria o bispo de Roma equivocado quando oferece sacrifícios ao Senhor sobre os veneráveis ossos dos falecidos Pedro e Paulo, do modo como já dissemos, mas de acordo com você (Vigilâncio), sobre um punhado de poeira sem valor, julgando que seus túmulos não são dignos de ser altares de Cristo? E não seria este o único bispo de uma cidade a estar equivocado, mas os bispos de todo o mundo já que, ao contrário do sustentador de tavernas Vigilâncio, entram nas basílicas dos mortos, onde "um punhado de poeira e cinzas sem valor encontram-se envoltos em um pedaço de pano" encardido ou encardindo. Assim, segundo você, os templos sagrados são como os sepulcros dos fariseus, caiados por fora, enquanto que por dentro resta a imundície, estando cheios de podridão e odores fétidos. E então ele (Vigilâncio) atreve-se a vomitar suas porquices sobre esta questão e afirma: "Será que as almas dos mártires amam tanto suas cinzas que acabam permanecendo em torno delas, para que, estando sempre presentes não fiquem tristes por surgir ali alguém para rezar, pois se estivessem ausentes, não conseguiriam ouvir?" Ó, monstro, que merece ser banido para os confins da terra! Você (Vigilâncio) ri das relíquias dos mártires e na companhia de Eunômio, pai desta heresia, calunia as igrejas de Cristo? Você não se preocuopa em andar com tal companhia e prega contra nós as mesmas coisas que ele levanta contra a Igreja? Todos os seus seguidores se recusam a entrar nas basílicas dos Apóstolos e mártires, porém, contraditoriamente, eles adoram o falecido Eunômio, cujos livros eles consideram de maior autoridade que os Evangelhos. E eles também crêem que a luz da verdade estava nele assim como alguns outros hereges sustentavam que o Paráclito teria vindo em Montano ou que o próprio Maniqueu era o Paráclito. Você não pode mesmo encontrar uma ocasião de orgulho para supor que é o inventor dessa nova espécie de maldade, sendo que essa sua heresia já foi outrora levantada contra a Igreja. Ela encontrou, porém, um oponente em Tertuliano, um homem de grande sabedoria, que escreveu um famoso tratado que ele corretamente intitulou "Scorpiacum", porque assim como o escorpião dobra-se como um arco para infligir o ferimento, também o que era formalmente conhecido como "a heresia de Caim" infere veneno no corpo da Igreja. Tal acusação repousou, ou melhor, ficou sepultada por um longo tempo, mas agora ressurge graças a Dormilâncio. Eu fico surpreso de ver você (Vigilâncio) omitir então que não deveria haver martírios, já que Deus, que não quer o sangue de bezerros e bois, muito menos poderia querer o sangue dos homens. É exatamente esta a sua conlusão, ou melhor, se você não afirma isso [explicitamente], ao menos é esta a conclusão que [implicitamente] se chega. E se [você] mantiver a idéia de que as relíquias dos mártires devem ser pisoteadas, acabará também por concluir que o derramamento de sangue que sofreram não é digno de qualquer honra.
Capítulo IX
A respeito das vigílias e das freqüentes vezes que passamos a noite nas basílicas dos mártires, darei aqui uma breve resposta, a qual já ofereci em outra carta há cerca de dois anos, quando escrevi para o respeitável presbítero Ripário. Você (Vigilâncio) afirma que elas não deveriam ser observadas, exceto quando estamos próximos da Páscoa, pois não seguem as vigílias anuais de costume. Se assim fosse, então os sacrifícios [da Missa] não deveriam ser oferecidos a Cristo a cada dia do Senhor (=domingo), exceto quando celebrássemos a Páscoa da Ressurrreição do Senhor, tendo sido introduzido o costume de haver muitas Páscoas ao invés de uma. Seja como for, não devemos imputar a homens piedosos as faltas e erros de jovens e mulheres inúteis que muitas vezes são encontrados por aí durante a noite. É verdade que, mesmo nas vigílias da Páscoa, alguns desses se aproximam da Luz; mas as falhas de alguns não constituem em argumento válido contra a religião em geral, de modo que tais pessoas, ainda que não participem da vigília, podem estar erradas inclusive em suas próprias casas ou na de outras pessoas. A traição de Judas não anula a lealdade dos Apóstolos. E se alguns se comportam mal durante a vigília, isso não implica que esta deva deixar de existir. Aliás, melhor seria que [esses] dormissem mesmo para que, não sendo obrigados a participar das vigílias, pudessem ao menos preservar a sua castidade. Ora, se uma coisa foi feita boa, ela não pode ser má se for feita muitas vezes. E se existe aí alguma falta a ser combatida, a censura não consiste em ser feita várias vezes, mas por ter sido feita uma única vez. Portanto, nós [também] não deveríamos realizar a vigília da Páscoa, pois poderíamos temer que adúlteros pudessem aproveitar para satisfazer seus desejos [sexuais] duramente reprimidos, ou que certa esposa pudesse encontrar a oportunidade certa para pecar sem que suscitasse desconfiança contra ela da parte de seu marido. [Na verdade,] as ocasiões em que raramente se recorre são justamente aquelas em que surgem os maiores desejos.
Capítulo X
Eu não posso aqui percorrer todos os tópicos abordados nas cartas dos respeitáveis presbíteros. Irei, portanto, fazer referência a alguns pontos extraídos dos tratados de Vigilâncio. Ele prega contra os sinais e milagres que ocorrem nas basílicas dos mártires, afirmando que eles se dão [apenas] para os infiéis, não para os fiéis, muito embora a questão aqui seria esta: em vantagem de quem ocorrem, não sob o poder de quem. Supõe [ele] que tais sinais são para os infiéis pois como estes não obedeceriam nem a palavra nem a doutrina, acabariam por crer através dos sinais. Com efeito, até mesmo o Senhor teria apresentado sinais para os infiéis (tais sinais do Senhor não entram aqui em discussão) porque aquele povo não tinha fé; [esses sinais] eram dignos de grande admiração pois que poderosíssimos para subjugar os corações mais duros, compelindo os homens a crerem. Eu não vou pedir para que você (Vigilâncio) me diga que esses sinais são para os infiéis, mas para respoder a esta questão: como é que essas poeiras e cinzas indignas encontram-se associadas com este maravilhoso poder de sinais e milagres? Eu percebo - e como percebo -, ó mais infeliz dos mortais, o porquê de você ser tão preocupado e o que causa esse temor: é que esse espírito imundo, que força você a escrever essas coisas, foi muitas vezes torturado por essa "poeira sem valor", e continua sendo torturado neste momento. E se no seu caso em específico ele disfarça as suas feridas, em outros casos ele próprio confessa. Você é fiel seguidor dos pagãos e ímpios Porfírio e Eunômio e acha que aqueles (sinais que ocorrem nas basílicas dos mártires) são armadilhas dos demônios, sendo que estes não gritam [ao serem expulsos], somente fingem seus tormentos. Deixe-me dar um conselho a você: vá até as basílicas dos mártires; certamente um dia você será libertado; você encontrará lá vários casos como o seu e receberá o fogo - não das velas dos mártires que ora deixam você ofendido - mas das chamas invisíveis. Então você confessará aquilo que agora nega e irá pronunciar livremente o seu nome, pois esse que atualmente fala na pessoa de Vigilâncio é, na verdade, Mercúrio (o mercenário); ou Noturno (que, segundo o "Amphitryon" de Platão, dormia enquanto Júpiper, por duas noites seguidas, mantinha relações adulterinas com Alcmena, gerando assim o poderoso Hércules); ou [seu] pai Baco (famoso beberrão, portando a caneca em seus ombros, com sua face rubra, lábios cheios de espuma e brigão descabeçado).
Capítulo XI
Qualquer dia desses, quando um terremoto repentinamente ocorrer nesta província no meio da noite, obrigando-nos a acordar, você (Vigilâncio), o mais prudente e sábio dos homens, começará a pregar pelado e nos trará à mente o relato de Adão e Eva no paraíso. Eles, então, quando se lhe abriram os olhos, ficaram envergonhados, porque viram que estavam nus, e cobriram suas vergonhas com folhas de árvores. Mas você, que parece ter sido despido das suas roupas e da sua fé, no repentino terror que o esmagou e ainda sob os efeitos da bebida da última noite, mostrou sua sabedoria expondo sua nudez de maneira tão evidente aos olhos dos irmãos. Tais são os adversários da Igreja! Estes são os líderes que lutam contra o sangue dos mártires! Eis aí um espécimen dos oradores que estrondam contra os Apóstolos! Ou melhor: eis aí os cachorros loucos que uivam para os discípulos de Cristo!
Capítulo XII
Eu confesso o meu próprio temor, por imaginar que tudo isso provém da superstição. Quando eu ficava bravo, ou tinha maus pensamentos em mente, ou algum espírito da noite me seduzia, eu não me atrevia a entrar nas basílicas dos mártires, eu tremia completamente, tanto no corpo quanto na alma. Talvez você (Vigilâncio) ria e zombe, dizendo que isto chega ao nível das fantasias selvagens das mulheres mais frágeis. Se é assim, eu não me envergonho de ter uma fé igual daquelas [mulheres] que viram por primeiro o Senhor ressuscitado, que foram enviadas aos Apóstolos e que, na pessoa da Mãe de nosso Senhor e Salvador, foram recomendadas aos santos Apóstolos. Vomite suas indecências, se quiser, para os homens que estão no mundo; eu jejuarei ao lado destas mulheres. Sim, [vomite] para homens religiosos que testemunham sua castidade e que, com a face pálida em razão da prolongada abstinência, demonstram a própria castidade de Cristo.
Capítulo XIII
Alguma outra coisa também parece estar incomodando você (Vigilâncio). Você está preocupado que a continência, a sobriedade e o jejum crie raízes entre os povos da Gália e as tavernas desse lugar deixem de funcionar. Então você será incapaz de manter as suas vigílias noturnas diabólicas e diversões entre as bebidas. Ademais, fiquei sabendo a partir daquelas mesmas cartas [dos presbíteros Ripário e Desidério] que, desafiando a autoridade de Paulo, ou melhor, a de Pedro, João e Tiago - que concederam o direito de apostolado a Paulo e Barnabé e ordenaram que se lembrassem dos pobres - você proíbe que qualquer socorro pecuniário seja remetido para Jerusalém, para o socorro dos santos. Agora, se eu abordo esta questão, você imediatamente solta a língua e vocifera que estou defendendo a minha própria causa. Evidentemente, você foi tão generoso para a comunidade inteira que se não viesse a Jerusalém para torrar todo o seu dinheiro ou o dos seus patrões, todos nós estaríamos à beira da fome. Eu digo o que o bem-aventurado Apóstolo Paulo disse em quase todas as suas epístolas! Ele ordenou para as igrejas dos gentios que, no primeiro dia da semana (=domingo), isto é, no dia do Senhor, as ofertas feitas por cada um fossem remetidas para Jerusalém, para socorrer os santos, e isso seria observado pelos seus seus discípulos, bem como por aqueles aprovados por estes. E se isso não devesse ser feito, ele mesmo enviaria ou levaria [para Jerusalém] o que recolheu? Também nos Atos dos Apóstolos, quando se dirigiu ao governador Félix, ele disse: "Depois de muitos anos, eu subi a Jerusalém a fim de levar esmolas e ofertas para a minha nação, e para cumprir os meus votos, tendo sido encontrado me purificando no templo". Por que ele não distribuiu em alguma outra parte do mundo, nas igrejas nascentes em que instruía na fé, aqueles dons que recebeu dos outros? Mas ele percorreu longo caminho para dar aos pobres dos lugares santos que, abandonando suas poucas posses por amor a Cristo, convertiam todo o seu coração para o serviço do Senhor. Levaria muito tempo agora se eu começasse a repetir aqui todas as passagens das suas epístolas nas quais ele advoga e defende de todo coração aquele dinheiro que seria remetido para os fiéis de Jerusalém e locais santos. Não para gratificar a avareza, mas para socorrer. Não para acumular riquezas, mas para suportar a fraqueza do pobre corpo e para repelir o frio e a fome. E este costume continua na Judéia até a presente data, não apenas entre nós, mas também entre os hebreus. Isto é o que eles observam na lei do Senhor, dia e noite. E nenhum pai sobre a terra, exceto o Senhor, pode ser protegido pelo auxílio das sinagogas e de todo o mundo; assim, a desigualdade e a angústia de outros podem ser reduzidas, pois a abundância que alguns têm pode suportar a necessidade de outros (cf. 2Coríntios 8,14).
Capítulo XIV
Você (Vigilâncio) responderá que todos podem fazer isto em suas próprias nações, caso contrário seus pobres nunca poderão ser auxiliados com os recursos [pecuniários] da Igreja. Nós não negamos que a assistência deveria alcançar todos os pobres, inclusive judeus e samaritanos, se estes aceitassem. Mas o Apóstolo ensina que a esmola deve ser dada a todos, a começar, porém, por aqueles que compartilham da mesma fé (Gálatas 6,10). E a respeito destes, o Salvador disse no Evangelho: "Fazei-vos amigos das riquezas da injustiça, [para que quando faltarem] vos recebam em habitações eternas" (Lucas 16,9). O quê? Podem estas pobres criaturas, com seus trapos e imundícies, dominarem desse jeito, por furiosa ambição? Podem elas - que nada são, nem agora, nem depois - possuírem habitações eternas? Não há dúvida de que não é a simples pobreza, mas a pobreza em espírito, que é chamada de bem-aventurada. Destes foi escrito: "Bem-aventurado aquele que ofereceu a sua mente para o pobre e o necessitado. O Senhor o livrará naquele dia ruim". Mas o fato é que, para suportar o pobre existente entre o povo comum é necessário dinheiro e não a mente. No caso do pobre santificado, sua mente se ocupa dos santos exercícios, e, por isso, recebe [a esmola] com rubor; e quando o que recebeu é mortificado, se converte em coisas espirituais aquilo que eram coisas carnais, beneficiando aquele que deu. É seu argumento (=de Vigilâncio) que aqueles que mantêm o que têm e distribuem pouco a pouco entre os pobres, aumentam suas posses e agem muito mais profundamente que aqueles que vendem todas as suas posses e dão tudo de uma só vez. Porém é o Senhor - e não eu - quem dá a resposta: "Se você quer ser perfeito, vá, vende tudo o que tem e dá aos pobres. Depois vem e me segue" (Mateus 19,21). Ele (Cristo) fala para aqueles que desejam ser perfeitos e que, como os Apóstolos, deixaram pai, barco e redes. O homem que você aprova está sentado na segunda ou terceira fileira; mesmo assim nós o recebemos para que se compreenda que o primeiro será antecedido pelo segundo e o segundo pelo terceiro.
Capítulo XV
Permita-me acrescentar que os nossos monges não são dissuadidos da sua firmeza por causa de sua língua de víbora e mordida feroz. Seu argumento a respeito deles funciona assim: se todos os homens se isolassem e vivessem na solidão, quem haveria para frequentar as igrejas? Quem sobraria para vencer aqueles que se ocupam dos hábitos mundanos? Quem seria capaz de incentivar os pecadores a possuir uma conduta virtuosa? De uma forma similar: se todos fossem tolos como você, quem seria sábio? E ainda seguindo o seu argumento, a virgindade não seria digna de aprovação, pois se todos fossem virgens, não existiriam casamentos; a raça [humana] pereceria; os recém-nascidos não chorariam em seus berços; parteiras perderiam os seus empregos e se tornariam indigentes; e Dormilâncio, totalmente sozinho e encolhido de frio, mentiria só para si mesmo. A verdade é esta: a virtude é coisa rara e não é perseguida por muitos. Daí o pouco que foi dito: "Muitos são chamados, mas poucos são escolhidos". A prisão estaria vazia... Mas a função de um monge não é ensinar, mas sim lamentar, como uma carpideira, para si ou para o mundo, e com receio de que se antecipe a vinda do Senhor. Conhecedor das suas próprias fraquezas e fragilidades dO seu corpo, ele (o monge) se preocupa com os tropeços, para que não seja assaltado por alguma coisa e, assim, caia e se quebre. Por isso, ele evita o sorriso das mulheres, particularmente o das mais jovens, e se isola, temendo até mesmo aquilo que é seguro.
Capítulo XVI
Perguntará você (Vigilâncio): por que se retirar para o deserto? A razão é óbvia. Para que eu não possa te escutar, nem te ver! Para que eu não possa ser perturbado pela sua loucura! Para que eu não me ocupe com você! Para que os olhos da prostituta não me tornem um cativo! Para que a beleza não me leve para abraços irregulares! Você replicará: "Isto não é uma luta, mas uma fuga. Permaneça na linha de batalha, coloque a sua armadura e resista aos seus inimigos! E então, tendo vencido, receberá a sua coroa". Pois eu confesso a minha fraqueza. Eu não lutaria na esperança de vencer, para não correr o risco de perder em algum momento a vitória. Se eu fujo, eu evito a espada. Se eu fico, ou eu venço ou eu sou derrotado. Que necessidade tenho eu de ignorar as certezas e seguir as incertezas? Quer com o meu escudo, quer com os meus pés, eu devo evitar a morte [certa]. Você que luta pode vencer, mas também pode ser vencido. Não existe segurança em dormir com uma serpente do seu lado; é possível que ela não me pique, mas também é possível que ela, após certo tempo, acabe por me picar. Nós chamamos de mães aquelas mulheres que não são mais velhas que irmãs e filhas, e não ficamos corados por encobrir nossos vícios com os nomes mais pios. O que tem para fazer um monge na cela das mulheres? Qual o significado dos olhares e conversas secretas que evitam a presença de testemunhas? Amor santo não tem desejo inquieto. Ademais, o que já dissemos a esse respeito deve ser também aplicado à avareza e todos os vícios que devemos evitar pela solidão. Assim, ficamos afastados das cidades populosas para que não sejamos compelidos a fazer o que nos pedem, não tanto pela natureza, mas pela escolha.
Capítulo XVII
A pedido dos respeitáveis presbíteros - como já disse - eu me dediquei à redação destas poucas considerações, em uma noite de trabalho, pois meu irmão Sisínio, tem pressa de partir para o Egito, onde socorrerá os santos e, por isso, encontra-se impaciente para ir embora. É uma pena, pois a questão por si mesma é tão blasfema que leva à indignação um escritor que possui uma multidão de provas. Mas se Dormilâncio pensa que abusará de mim mais uma vez, e se pensa em disparar contra mim aquela mesma boca blasfema com a qual quebra em pedaços os Apóstolos e mártires, certamente escreverei algo mais que estas linhas. Seja como for, passarei uma noite inteira em vigília, em favor dele e das suas companhias - sejam elas discípulos ou mestres - que pensam que nenhum homem pode ser digno do ministério de Cristo, exceto se for casado e sua esposa for vista com filhos.
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